Author: Sônia Ramalho de Farias
•15:28
A Paixão Segundo G.H.: Conhecimento E Linguagem Em Clarice Lispector Ou A Transgressão Do Interdito No Ritual De Sabá

A dialética busca do conhecimento

No próprio nível de enunciado textual, A paixão segundo G. H. (1964) apresenta-se como uma via crucis, uma travessia: a busca de um conhecimento que se confunde com a tentativa de apreender o sentido da vida. Essa travessia se configura ainda, e mais especificamente, como penetração em uma nova realidade, capaz de romper com o horizonte de expectativas e de saber prévio, estabelecido pelo status quo e pela rotina em que habita a narradora/personagem. A travessia, no entanto, não se postula como um caminhar contínuo, compreendendo uma progressividade evolutiva. Ao contrário, ela é empreendida como um movimento dialético, ou seja, como um modo de questionar existencial e filosoficamente a verdade buscada, por meio da oposição e conciliação das contradições.
A advertência que abre o livro, subscrita pela própria autora e dirigida “A possíveis leitores, já esclarece o percurso romanesco. Tal advertência, que contém o propósito de dirigir a leitura através da seleção do leitor ideal (“ pessoas de alma já formada”), pode funcionar como “modelo consciente” (Lima, 1973, p. 287) para a formulação da assertiva acima esboçada.Vale, pois, recuperar as palavras iniciais do romance:

“Este livro é como um livro qualquer. Mas eu ficaria contente se fosse lido apenas por pessoas de alma já formada. Aquelas que sabem que a aproximação, do que quer que seja, se faz gradualmente e penosamente, atravessando inclusive o oposto daquilo que se vai aproximar”. (Lispector, 1977, p. 2)

A partir das colocações acima, pode-se deduzir as coordenadas básicas que orientam o percurso da narradora e a tessitura narrativa: a apreensão do conhecimento se dá pelo reconhecimento da própria impossibilidade de conhecer: “Toda compreensão súbita é finalmente a revelação de uma aguda incompreensão. Todo momento de achar é um perder-se a si próprio” (Lispector. p. 11).

A linguagem e o silêncio

Estas coordenadas não poderiam ser compreendidas sem uma reflexão sobre o próprio veículo resgatador do conhecimento, ou seja, a linguagem. Assim, a narrativa se inicia como um processo explícito de enunciação da experiência vivida. Narrar é a maneira de se buscar uma forma organizada, capaz de resgatar a ininteligibilidade do mundo desconhecido, no qual inadvertidamente penetrara a narradora. O pensamento ordenado em linguagem se apresenta como meio de exorcizar o medo do caos, engendrado pela ruptura da ordem habitual. Todavia, deve-se indagar sobre a possibilidade de tal empreendimento, pois dizer em A paixão segundo G.H. – como em outras narrativas de Clarice Lispector, sobretudo nas suas duas últimas novelas A hora da estrela (1977) e Um sopro de vida (1978) – implica em reconhecer a imprecisão do dito, em se questionar a possibilidade da linguagem em romper a opacidade das coisas: “Será preciso coragem para fazer o que vou fazer: dizer. E me arriscar à enorme surpresa que sentirei com a pobreza da coisa dita. Mal direi e terei que acrescentar: não é isso, não é isso” (Lispector. p. 16).
Linguagem e silêncio (cf. Lima, 1973, p. 413-419, 1972, p. 57) se apresentam, portanto, com a matriz em torno da qual se instala a tensão maior do texto, como se evidencia pela passagem transcrita: “Não tenho uma palavra a dizer. Por que não me calo então? Mas se eu não forçar a palavra, a mudez me engolfará para sempre em ondas. A palavra e a forma serão a tábua onde boiarei sobre vergalhões da mudez”. (Lispector. p. 17). A procura da conquista do conhecimento pela linguagem é então também a procura da conquista de traduzir o desconhecido, de decifrar o enigma. Mas paradoxalmente, o que seria deciframento se converte em novo ciframento. Trata-se de “Traduzir o desconhecido para uma língua que desconheço e sem sequer entender para que valem os sinais” (Lispector. p. 18). A escrita, assim, se converte, na própria concepção da narradora, em mera “reprodução” sem “expressar”, uma vez que é apreendida apenas como significante cujo significado não pode ser atualizado pelo receptor/narrador. Chega-se, portanto, a um discurso tautológico em que “a explicação de um enigma é a repetição do enigma” (Lispector. p. 159). A narradora tem consciência de que o enigma estabelece o silêncio já que o formula como uma pergunta para a qual não tem resposta.

É deste modo que se postula a primeira forma de contato com o mundo insólito no qual a narradora/protagonista havia desprevenidamente penetrado: o quarto da empregada – através do qual vai-se romper toda a sensação de estabilidade engendrada pelo aconchego da sólida estrutura burguesa que a cercava. Penetrar no silêncio do enigma constituiria, entretanto, para ela, uma possibilidade de recusa da falsa transparência contida no previamente traçado pela ordem habitual da vida anterior. Pois esta se configurava como um saber prévio, oferecido por uma linguagem mascaradora que lhe fora socialmente imposta e que se confunde com a própria função do mito, conforme é postulada por Lévi-Strauss (1976) : a de assegurar, pelo oferecimento de uma resposta a uma pergunta que não foi explicitamente formulada, a harmonia do sistema social. É o que se deduz do trecho seguinte:

“Eu tinha a capacidade da pergunta, mas não a da resposta”.
Não, nem a pergunta eu soubera fazer. No entanto, a resposta se impunha a mim desde que nascera. Fora por causa da resposta contínua que eu, em caminho inverso, fora obrigada a buscar a que pergunta ela correspondia. Então eu me havia perdido num labirinto de perguntas, e fazia perguntas a esmo, esperando que uma delas ocasionalmente correspondesse à da resposta e então eu pudesse entender a resposta”. (Lispector. p. 159/160).

A formulação da pergunta (função do enigma) gera-se, pois, da própria necessidade de se encontrar a resposta (função do mito) conforme articulação estabelecida por Lèvi-Strauss, (1976, p. 30), e a adequação entre resposta e pergunta corresponderia à possibilidade de rompimento do silêncio e à inauguração da própria linguagem. A tensão, todavia, não se resolve em termos de oposição excludente. Como já foi enunciado no início deste ensaio, é do próprio reconhecimento da impossibilidade do conhecimento pela linguagem que se postula a aquisição do conhecimento. É do não sentido que nasce o acesso a toda significação:

“Eu tenho à medida que designo e este é o esplendor de se ter uma linguagem. Mas eu tenho muito mais à medida que não consigo designar. A realidade é a matéria-prima, a linguagem é o modo como vou buscá-la e não acho. Mas é do buscar e não achar que nasce o que eu não conhecia, e que instantaneamente reconheço. A linguagem é o meu esforço humano. Por destino tenho que ir buscar e por destino volto com as mãos vazias. Mas volto com o indizível. O indizível só me poderá ser dado através do fracasso de minha linguagem. Só quando falha a construção é que obtenho o que ela não conseguiu” (Lispector. p. 211).

A suspensão do juízo

Se a tentativa de romper a opacidade do mundo equivale a uma recusa em aceitar o uso convencional da linguagem, asseguradora da falsa correspondência entre “as palavras e as coisas”, e a questionar o saber prévio que se punha como inquestionável pela ordem do quotidiano, este questionamento implica em uma prática de desconstrução do viver anterior. A personagem agora dá-se conta de que existia apenas como “réplica do modelo original”, o negativo de um fotografia, sua personalidade se constituindo tão somente como o avesso do seu eu, um viver “entre aspas” que lhe era assegurado pelo olhar do outro sobre si mesma. A procura da afirmação individual é, assim, também uma busca de ruptura com todos estes valores sociais, éticos e estéticos, através dos quais, como num reflexo, ela se reconhecia:
“Em torno de mim espalho a tranqüilidade que vem de se chegar a um grau de realização a ponto de ser G.H. até nas valises. Também para minha chamada vida interior eu adotara sem sentir a minha reputação: eu me trato como as pessoas me tratam, sou aquilo que de mim os outros vêem. Quando eu ficava sozinha não havia uma queda, havia apenas um grau a menos daquilo que eu era com os outros, e isso sempre foi minha naturalidade e a minha saúde. E a minha espécie de beleza” (Lispector. p. 25).

Faz-se necessário, portanto, um despojamento da “transcendência” humana, o que implica na proposta da “desumanização”, através da recuperação do estado “neutro” da organicidade da matéria viva. Empreende-se, pois, uma trajetória inversa de volta à “raiz das coisas”, em busca do contato primeiro com a vida primitiva. A barata, o desenho mural, a excessiva claridade e a limpeza insólita do quarto da empregada funcionam como os significantes geradores do enigma – condutores da tentativa de ruptura e da “suspensão das aspas” - por meio dos quais se dará esse trajeto. Equivalente função, ao mesmo tempo enigmática e questionadora, adquire no texto a recordação do olhar da doméstica (o olhar do outro – marca da alteridade social – que se opõe ao olhar dos seus semelhantes, através do qual a narradora postulava sua identidade). Análoga função é atribuída, ainda, a suposição do julgamento negativo que a empregada fazia sobre a protagonista, contribuindo também para uma revisão de conceitos arraigados e uma busca de novos caminhos.
O trajeto percorrido por G. H. é congruente ao “retorno do reprimido”: o texto estabelece uma analogia entre o percurso empreendido e o processo de retorno do recalcado nos loucos: “A vida se vingava de mim, e a vingança consistia em voltar, nada mais. Todo caso de loucura é que alguma coisa voltou. Os possessos, eles são possuídos pelo que vem, mas pelo que volta” (Lispector p. 80). Atingir o silêncio dos loucos é, portanto, deixar falar a linguagem do desejo inconsciente para que dela possa surgir um novo sentido. O processo de “desumanização” a que se submete a protagonista equivale, assim, à transgressão do interdito: “comer o fruto do bem e do mal” (semantizado no texto pela massa branca, matéria “imunda” e raiz da vida que se desprende do corpo da barata esmagada), o que acarretará a “expulsão do paraíso”, entendendo-se por este o falso mundo de atributos e valores em que a personagem estava inserida. Compreende-se então a relação estabelecida na narrativa entre o ato de libertação e o processo de iniciação no ritual do sabá. Ambos são marcados pela mesma carga semântica de perversão que se configura pelo excesso de conjunção, aqui traduzido pela prática de autofagia empreendida pela personagem ao identificar a substância da barata à sua própria substância humana. O ritual do sabá funciona, portanto, como a maneira de se atingir o inexpressivo do inumano, a despersonalização desejada, o estado neutro da matéria, a partir do qual a personagem postula uma nova forma de significação para o mundo e o encontro consigo mesma.
A idéia do neutro como meio da libertação é isomorfa à formulação do novo método de visão imparcial reivindicado pela narradora. Em ambos os casos trata-se da postulação da quebra do “horizonte de expectativas” gerado pelo saber prévio que até então guiara sua visão do mundo:

“Meu método de visão era inteiramente imparcial: eu trabalhava diretamente com as evidências da visão, sem permitir que sugestões alheias à visão predeterminassem as minhas conclusões; eu estava inteiramente preparada para surpreender a mim mesma. Mesmo que as evidências viessem contrariar tudo que já estava em mim assentado pelo meu tranqüilo delírio” (Lispector p. 127).

Tem-se, portanto, uma concepção do conhecimento postulado em torno de dois termos que no texto são marcados opositivamente: a capacidade de julgar e a suspensão do juízo. O primeiro correspondendo à “transcendência” das coisas pela reflexão que se faz sobre elas, o segundo equivalendo a um despojamento dos atributos dados pelo julgamento, maneira de se entrar em contato com a substância muda da matéria. A oposição, no entanto, é geradora de uma nova tensão: a que se estabelece entra as possibilidades de erro e de acerto contidas na pura percepção ótica do objeto. Tensão que a narradora procura resolver através de uma conciliação dialética em que da constatação do erro emerge a possibilidade da “verdade”, consubstanciada numa nova forma de conhecimento para além de caminhos prévia e habitualmente traçados. Como explicita a narradora: “Meu erro, no entanto, devia ser o caminho de uma verdade: pois só quando erro é que saio do que conheço e do que entendo (....) A verdade tem que estar exatamente no que não poderei jamais compreender” (Lispector p.129).

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. LISPECTOR, Clarice. A paixão segundo G.H. Rio de Janeiro: José Olympio, 1977.
2. LIMA, Luiz Costa. Motivação e tensão nos sistemas simbólicos. In: Estruturalismo e teoria da literatura. Petrópolis: Vozes, 1973. p. 287.
3. Idem ibidem p. 413-419 e ainda, do mesmo autor, Explorações no sertão cósmico. Cadernos da PUC, 11. Rio de Janeiro: PUC/RJ, out. de 1972. p. 57 e segs.
4. LÉVI-STRAUSS, Claude. O campo da antropologia. In: Antropologia estrutural dois. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro 1976.
|
This entry was posted on 15:28 and is filed under . You can follow any responses to this entry through the RSS 2.0 feed. You can leave a response, or trackback from your own site.

0 comentários: