Author: Sônia Ramalho de Farias
•23:58
O rural e o urbano nas profecias revolucionárias de Jorge Amado e Glauber Rocha: Seara vermelha e Deus e o diabo na terra do sol

“Essas coisas se passaram no sertão, onde a fome cria bandidos e santos” (Jorge Amado, Seara vermelha, p. 239).

Em diferentes momentos do processo histórico e cultural brasileiro dois intelectuais, um romancista, Jorge Amado, outro cineasta, Glauber Rocha, empreendem em suas respectivas obras ficcionais, Seara vermelha (1946) e Deus e o diabo na terra do sol (1964)[1], uma reflexão crítica e polêmica sobre dois espaços geográficos e dois contextos socioculturais, o rural e o urbano, atribuindo-lhes fortes conotações simbólicas: o atraso e o progresso, a caatinga e a seara, o sertão e o mar, as forças da permanência e as formas da revolução social. Medeiam essa discussão os temas do messianismo e do cangaço, que elegem como possibilidade de pensar a superação do atraso e do subdesenvolvimento do sistema coronelista e latifundiário do Nordeste, na sua fase de transição da estrutura rural oligárquica para a estrutura urbana e burguesa.
A representação ficcional desses dois espaços é informada pelas respectivas orientações ideológicas que norteiam os projetos estéticos dos autores. No caso de Jorge Amado, a ideologia do Partido Comunista Brasileiro (PCB), responsável pelo “realismo socialista” da fase romanesca do escritor, caracterizada pela vinculação entre projeto político e projeto literário. No caso de Glauber, de forma menos óbvia e direta, pelas idéias desenvolvimentistas em vigor desde as teses do tenentismo (cf. Santa Rosa, 1976) na década de 20, que prenunciam a Revolução de 30, intensificadas a partir dos anos 50 no governo de Juscelino Kubitschek com as teorias nacionalistas do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB) sobre a questão da dependência econômico-cultural e do processo de desenvolvimento do Brasil como projeto nacional (cf. Toledo, 1977). E presentes ainda no início dos anos 60, tanto no cenário político do país, como no cenário artístico e cultural, neste último caso nas orientações estético-políticas do Centro Popular de Cultura (CPC) e nas discussões do “Cinema Novo”, ambas permeadas pelo debate em torno do conceito de uma arte revolucionária nacional-popular.
Considerando a inserção dos dois autores e de suas produções estéticas aqui contempladas nas correspondentes etapas conjunturais postas em destaque (os anos 40 e os anos 60), Jorge Amado e Glauber Rocha se situam no panorama da produção artística e literária brasileira numa vertente que se pode chamar de vertente progressista no tocante à percepção do processo histórico do país. Aproxima-os nessa vertente a postura crítica comum (não sem ambigüidades) diante da estrutura arcaica da República Velha e de suas formas sociais de manifestação: coronelismo, cangaço e misticismo religioso, por oposição a uma outra vertente que tematiza esse processo e essas formas através de uma perspectiva predominantemente conservadora, a exemplo dos romances Pedra Bonita (1938) e Cangaceiros, (1953), de José Lins do Rego, e A Pedra do Reino (1971), de Ariano Suassuna2.
Identificados por essa postura comum face ao espaço regional do Nordeste, os dois autores não apresentam, no entanto, uma perspectiva unívoca quanto às soluções revolucionárias que desejam para o país através de suas produções ficcionais. Distingue-os o encaminhamento dado a essas soluções na cena romanesca e na cena fílmica. Na esteira das idéias do Partido Comunista, Seara vermelha representa o advento da revolução social sem atentar para o processo de desenvolvimento capitalista do país. Ao contrário, estabelece a passagem direta do mundo rural – representado na obra através de um processo de feudalização – para a sociedade socialista. A classe economicamente desfavorecida do espaço agrário nordestino, os “camponeses,” denominação dada no texto ao homem do sertão, constituem a força de rebeldia capaz de empreender essa revolução, mediante um estágio na cidade, onde são introduzidos ao marxismo pelas “células” do Partido Comunista. O romance descarta, assim, o papel das classes médias urbanas e da Revolução de 30, responsáveis pelo processo de industrialização que projeta o Brasil no cenário econômico mundial. A revolução socialista, neste caso, é uma revolução que queima etapas. A tendência seguida por Glauber Rocha em Deus e o diabo, diferentemente da do autor de Jubiabá, é uma tendência etapista. Pressupõe a necessidade de modernização industrial como meio de superação do setor rural, responsável pelas manifestações “primitivas” do atraso, para se chegar depois ao estágio socialista. Nesta ótica, comprometida com o projeto de modernização via desenvolvimentismo, ele defende para o Cinema Novo uma nova estética, a “estética da fome”, colocada a serviço da política de conscientização do povo em nome de uma verdadeira consciência nacional.


Os projetos estético-ideológicos dos dois autores: realismo socialista, romance proletário(Jorge Amado) e a estética da fome (Glauber Rocha)


Tanto nos textos de Glauber Rocha sobre o Cinema Novo, como nos ensaios e na literatura da fase política de Jorge Amado, tem-se uma concepção de arte como instrumento de conscientização das “massas”. Desalienar o povo por meio da elaboração artística constitui em momentos diferentes e segundo orientação diversa o objetivo perseguido por ambos os intelectuais nos seus respectivos contextos de produção.
Em Jorge Amado, essa concepção está estreitamente ligada às noções de “realismo socialista” e de “romance proletário” orientadas direta ou indiretamente pelo aparelho partidário e pela sua condição de intelectual militante. No discurso proferido por ocasião de sua posse na Academia Brasileira de Letras, ele faz um retrospecto de sua trajetória como escritor. Preocupa-se, então, em ressaltar os compromissos e a fidelidade que o mantiveram sempre ligado às causas populares em pró das quais procura emprestar sua voz. O texto frisa a coerência entre a ação do homem e a do literato, fazendo de ambas uma unidade indissociável:

Penso [...] poder afirmar que chego a vossa companhia pela mão do povo, pela fidelidade conservada aos seus problemas, pela lealdade com que procurei servi-lo, tentando fazer de minha obra arma de sua batalha, contra a opressão, pela liberdade, contra a miséria e o subdesenvolvimento e pelo progresso [...] fiz de minha obra uma coisa única, unidade do homem e do escritor (Amado, 1969, p. 9).

Nesta indistinção entre militante político e produtor intelectual, o discurso coordena intrinsecamente as concepções literárias do romancista aos ideais de progresso preconizado para a nação. O conceito de literatura como combate e conscientização política corresponde aos anseios por um Brasil moderno. Livre das amarras do atraso e da opressão. Voltado para um futuro promissor a ser construído pelas mãos de um “escritor político e participante”. Cabe a este avaliar os desacertos do país em busca de soluções para os problemas nacionais, como ocorre também com os “intelectuais proletários” de seus romances em quem se vê projetado. Como diz Almeida (1979, p. 202), referindo-se ao engajamento de seus personagens, que é também o do próprio autor: “O homem de ação [...] passa a encarnar a conduta literária na conduta política”.
“Escrever para o povo” é uma preocupação manifesta em diversas oportunidades pelo romancista. Através dela define o papel que lhe cabe enquanto produtor de bens simbólicos: o de servir de porta-voz (iluminado) das reivindicações e esperanças das classes economicamente desfavorecidas, mas não apenas dessas, pois seu conceito de povo é muito amplo, envolve “inúmeras camadas sociais, diversas categorias profissionais que compreendem pressupostos mais ou menos letrados, e reduz as distinções entre elas” (Almeida, 1979, p. 202). A tarefa de conscientizar e educar aqueles para os quais sua literatura se quer voltada equivale ao intento de garantir para a nação novos caminhos. Tarefa que estende a outros companheiros de ofício e de geração. No seu artigo da antologia O Partido Comunista e a liberdade de criação, dedica-se ao exame das tendências da produção literária e artística da década de 30, evidenciando os objetivos perseguidos pelos intelectuais brasileiros da época, no afã de despertar a consciência da “grande massa ávida de cultura”, a quem pretendem destinar o produto de suas realizações estéticas:

Os escritores e artistas brasileiros modernos, na última década, procuraram, sem dúvida, percorrer um caminho construtivo. Um caminho de educação do povo, de esclarecimento popular, de levantamento de nossos problemas e também da perspectiva técnica e formal, procurando colocar o conteúdo da nossa arte numa forma simples e pura mais próxima e accessível à grande massa ávida de cultura. (Amado, 1946, p. 30-31).

O artigo, inserido na coletânea publicada no mesmo ano da primeira edição de Seara vermelha, enfatiza o papel do intelectual “moderno” na construção da nação, seu empenho em transformar a sociedade via literatura. Esse projeto político-pedagógico para a arte pressupõe uma concepção utilitária de linguagem como instrumento social de desalienação, veículo de expressão dos desfavorecidos, uma linguagem quase referencial que busca “numa forma simples e pura”, fotografar, nos moldes naturalistas, as mazelas de um país subdesenvolvido, dando-lhes visibilidade, mas ao mesmo tempo desejando sanar suas contradições através de uma “teleologia materialista tranqüilizadora”. (Sussekind, 1984, p.160-161). Tal concepção pragmática de linguagem vincula-se aos preceitos do “realismo socialista”, conforme o entende o romancista em consonância com a definição dada ao termo nos estatutos da União dos Escritores Soviéticos, transcrito pelo autor em O mundo da paz (1952):

O realismo socialista, sendo o método de base da literatura e da crítica soviéticas, exige do artista uma representação veridicamente concreta da realidade no seu desenvolvimento revolucionário. O caráter verídico e historicamente concreto desta representação artística deve combinar-se com o dever de transformação ideológica e de educação das massas no espírito do socialismo (Amado, apud Almeida, 1979. p. 223).

Os subterrâneos da liberdade constituem o único exemplo declarado pelo autor de aplicação dos pressupostos desse conceito de realismo, sendo o livro a partir do qual se intensifica na cena literária brasileira o debate em torno da questão envolvendo Jorge Amado, que passa, a partir daí, a ser considerado como o precursor do realismo socialista, o seu introdutor no país (Almeida, 1979, p. 217-230). O conceito, no entanto, pode ser estendido aos outros romances da fase política do autor, inclusive Seara vermelha, cuja vinculação doutrinária aos ditames do partido e cujo intento de conscientização política e transformação social articulam-se a uma concepção documental e instrumentalista de verdade, nos moldes do realismo socialista. Afinal, como diz o autor, a “literatura do realismo socialista” é uma “literatura de partido” ( Amado apud Almeida, 1979. p. 224).
Aliada ao conceito de realismo socialista, a obra de Amado dessa fase revolucionária envereda pelas discussões em torno do “romance proletário” no Brasil. A questão é colocada pela primeira vez em nota introdutória a Cacau (1933), onde Amado encampa a definição de Agripino Grieco sobre o gênero. Segundo esclarece ainda Alfredo Berno de Almeida (1979, p. 93), “O romance que tem como tema a descrição do modo de vida do proletariado, na interpretação do crítico Grieco, pretende tornar-se um romance desta classe para o autor”. Essa autodefinição do gênero corresponde não só às características do romance de 1933, como às dos que lhe sucedem imediatamente, Suor (1934), Jubiabá (1935), podendo tangenciar outras produções romanescas do autor, a exemplo do romance de 46, cujo personagem Juvêncio é apresentado após sua adesão ao PCB como líder operário.
Embora não haja no contexto em que Amado escreve um consenso em torno das teorias acerca do gênero, adotado por escritores nem sempre vinculados a uma organização partidária, no escritor baiano esse conceito vincula-se às concepções do PCB, embora inexistam, como lamenta Almeida (1979, p.111), estudos sobre a programação política e cultural do partido que tornassem possíveis depurar devidamente “as relações entre as noções de romance proletário em vigor e a orientação partidária correspondente”.
A partir da autodefinição de Amado compreende-se o sentido que confere ao romance proletário. Este, como já mostrou Almeida (1979, p. 113), “não é uma literatura exclusiva para proletários ou não é uma literatura para ser lida somente por eles”. Tampouco o proletário tematizado nos romances do escritor baiano constitui-se como proletariado urbano e industrial. Ao contrário, são trabalhadores rurais que nas cidades transformam-se em operários: “tipógrafos”, “estivadores”, “lumpemproletariado”, “empregados de bondes”. Alguns desses “proletários”, como é o caso do já citado Juvêncio em Seara vermelha, devidamente doutrinados pelo PCB, adquirem um alto grau de conscientização política e voltam para o campo para fomentar a ação revolucionária.
A questão da conscientização política via arte é posta por Glauber Rocha através de pressupostos e postulados diferentes dos do escritor baiano. Sem nenhuma orientação doutrinária, o cineasta pensa esse processo pela mediação de um procedimento estético “a estética da fome”. Em Revolução do cinema novo, Glauber define a “estética da fome” como uma estética da violência capaz de empreender o processo de descolonização cultural do Brasil:

[...] uma estética da violência antes de ser primitiva é revolucionária, eis aí o ponto inicial para que o colonizador compreenda a existência do colonizado: somente conscientizando sua possibilidade única, a violência, o colonizador pode compreender, pelo horror, a força da cultura que ele explora. Enquanto não ergue as armas o colonizado é um escravo: foi preciso um primeiro policial morto para que o francês percebesse um argelino (Glauber, 1981, p. 31-32 – grifo do autor).

Pensada como forma de ultrapassar a dependência cultural, essa estética revolucionária define-se na sua proposta “épico-didática” pelos conceitos de nacional-popular em voga no Brasil desde meados dos anos 50, com a fase do arranco desenvolvimentista do governo de Juscelino Kubitschek, quando se deu o aceleramento do processo de industrialização no país e o conseqüente aguçamento da consciência de defasagem cultural entre as diversas classes. Nesse contexto, onde se destacam as idéias do CPC sobre o nacional-popular, passa a vigorar a tese, responsável pelas alterações nas concepções de cultura popular até então vigentes, de que a cultura popular não designa mais apenas “a cultura que vinha do povo, mas sim a que se fazia pelo povo. A cultura popular é então conceituada como um instrumento de educação, que visa dar às classes economicamente (e ipso facto culturalmente) mais desfavorecidas uma consciência política e social” (Leite, 1986, p. 185 – grifo do autor). É nessa acepção que Glauber defende para o Cinema Novo a idéia de um cinema revolucionário nacional-popular, o “cinema do autor”, contraposto às formas estereotipadas do cinema comercial, tanto aos estereótipos das chanchadas nacionais, quanto às formas padronizadas da indústria cinematográfica hollywoodiana e européia: “eu pensei num cinema nacional popular, e num cinema revolucionário popular, num cinema épico-didático, porque fundamentalmente estava pensando no cinema” (Rocha, 1970, apud Gerber, 1972, p. 28).
Nesse contexto, a idéia de cultura nacional encontra-se indissociavelmente ligada à de popular como expressão de uma vanguarda intelectual progressista que assume as manifestações culturais vindas do povo como estratégia de comunicação, mas reelabora-as criticamente, visando à conscientização deste mesmo povo. Não obstante algumas divergências do Cinema Novo em relação às teses do CPC, especificamente no que se refere a uma concepção estreita de realismo, que orientou, de certa forma, as concepções do grupo em torno da procura de uma arte popular que visasse, através de esquemas rígidos e estratificados, uma maior eficácia de comunicação junto ao público, em vários aspectos este cinema ainda está vinculado à proposta cultural do Centro. Especificamente no que diz respeito às tensões entre a valorização do popular (usando agora o termo no seu sentido tradicional), enquanto forma de reivindicação das classes oprimidas e a deslegitimação do popular, enquanto conteúdo, concebido como alienação.
A este propósito são bastante significativos os depoimentos dos intelectuais que participaram do debate sobre Deus e o diabo na terra do sol, do qual fez parte o próprio Glauber. Realizado em 24 de março de 1964, sob o patrocínio da Federação dos Clubes de Cinema do Brasil e do Grupo de Estudos Cinematográficos da União Metropolitana de Estudantes (UME), o debate encaminha as discussões sobre o filme em torno do conceito de cultura popular, que norteava o pensamento da intelectualidade brasileira na época. Neste sentido, são levantadas as questões do filme face à sua recepção junto ao público e repassados os conceitos de alienação e conscientização. Todos os participantes são unânimes em afirmar a função desmistificadora e desalienadora do filme glaubiano. Vale conferir o depoimento do próprio cineasta:

Aliás, [...] sobre todo esse problema de desalienação, quero registrar aqui no debate que eu pretendi desalienar as personagens para, uma vez desalienando-as, criar uma identificação delas com o público [...] esse problema de cultura popular, de o teatro ou o cinema atingir as massas, politizando-as, eu acho que o método assim achado é um método que da ao espectador uma liberdade de assumir uma consciência possível. Na medida em que se dá ao espectador um tipo acabado – parece, aliás, que essa é a maior contradição de toda a polêmica em torno da cultura popular [...], um tipo reduzido, um tipo estratificado, um tipo dentro dessa tradição, não se dá a menor possibilidade de diálogo com o espectador [...] (Rocha, 1965, p.148).

Negando o simplismo formal do CPC, por meio do qual se pretendia a transposição “mecânica dos processos sociais” (Galvão e Bernardet, 1983, p. 151), mas enfatizando nesta negação o conceito de alienação relativo às manifestações artísticas vindas do povo, Glauber Rocha oscila entre um tipo de produção vinculado ao projeto populista e seu débito para com este mesmo projeto.
Sem pretender reduzir a obra dos dois autores aos seus projetos estético-literários e às intenções autorais, não se pode deixar de considerar as marcas que as condições de produção imprimem no tecido ficcional do romance e do filme. Ao contrário, é atentando para essas marcas que se pretende acompanhar aqui as ambíguas representações do messianismo e do cangaço em Seara vermelha e Deus e o diabo na terra do sol, buscando compreender simultaneamente as suas respectivas profecias revolucionárias.

Seara vermelha e Deus e o diabo: um confronto

O elemento central que deflagra a trama narrativa de Seara vermelha e Deus e o diabo na terra do sol reside na questão fundiária do Nordeste, na estrutura oligárquica coronelista, que engendra o antagonismo de classe expresso no confronto imediato entre “camponeses” e latifundiários como “etapa imprescindível ao processo produtivo da zona rural”(Almeida, 1979). Numa das epígrafes do romance de Jorge Amado, o autor denuncia pela voz de Luís Carlos Prestes, então Secretário Geral do PCB, a origem dos males que afligem o homem do campo: “(...) está no latifúndio, na má distribuição da propriedade territorial, no monopólio da terra, a causa fundamental do atraso, da miséria e da ignorância do nosso povo” (Prestes, apud Amado, 1981, p.11). No final de Deus e o diabo, após o assassinato de Corisco por Antônio das Mortes, o cego cantador – que, sem participar da ação diegética, conduz o fio da narrativa como testemunha ocular dos fatos – explicita a sua versão da estória, incitando o espectador a interiorizar a lição, narrada em termos de fábula3:


Tá contada a minha estória
Verdade, imaginação
Espero que o sinhô tenha tirado uma lição:
Que assim mal dividido
Esse mundo anda errado,
Que a terra é do homem,
Não é de Deus nem do Diabo!
(Rocha, 1965. p. 114).

No tom doutrinário das palavras do líder político e no acento moralizante da canção do poeta nordestino tem-se a contextualização da matéria histórica do sertão, relativizada no seu teor de veracidade pela voz do vate sertanejo (verdade/imaginação). Num e noutro, a perspectiva de denúncia coincide com a ótica progressista das duas obras. Antecipa-se na epígrafe que antecede a ação narrativa e arremata-se no epílogo que fecha os acontecimentos do filme em forma de canção todo o conflito dramatizado no interior da diegese. Conflito em torno do monopólio da terra, envolvendo como protagonistas as forças da permanência decorrentes do atraso e subdesenvolvimento da estrutura agrária do Nordeste: o coronel, representante do “mandonismo local”, o cangaceiro e o beato, formas “primitivas” e “alienadas” da revolta popular, conforme a ótica das obras, postas em ambas as tramas para serem superadas pelas formas da revolução social.
A estrutura do romance dispõe esse conflito e sua utópica resolução em quatro partes: um prólogo, significativamente intitulado “A seara”, numa alusão ao modo de produção rural; a narrativa propriamente dita, subdividida em duas partes: a primeira, “Os caminhos da fome”, cujo título remete à migração nordestina para São Paulo (“a terra da promissão”); a segunda, “As estradas da esperança”, onde se tematizam as formas alternativas de enfrentamento da ordem coronelista, o cangaço, representado por Zé Trevoada e Lucas Arvoredo, o messianismo, simbolizado pelo beato Esteves, e a ação revolucionária da “classe operária”, o operariado rural, a ser deflagrada num futuro próximo por Juvêncio (Neném) sob a orientação doutrinária do PCB. A quarta parte, o “Epílogo”, retoma ciclicamente na metáfora agrícola do título, “A colheita”, a imagética da seara, fertilizada agora pela semente da revolução: “os brotos de dor e revolta cresciam naquela seara vermelha de sangue e fome, era chegado o tempo da colheita”. (Amado, 1981, p. 335).
O filme de Glauber apresenta uma estrutura mais ou menos similar a de Seara vermelha. Dividindo-se basicamente em duas partes, messianismo (beato Sebastião) e cangaço (Corisco), possui também uma introdução – onde se registram os acontecimentos que motivaram a entrada de Manuel no messianismo – ­­e um epílogo, a corrida de ex-vaqueiro Manuel e sua mulher Rosa pela caatinga do sertão em direção ao mar, acompanhada da cantiga do cego atrás mencionada. A canção do epílogo, como a metáfora da seara em Jorge Amado, remete também ciclicamente para a primeira seqüência do filme onde a estória é anunciada pela primeira vez na voz do cantador:

Vou contá uma estória
Na verdade e imaginação
Abra bem os seus olhos
Pra escutar com atenção
É coisa de Deus e Diabo
Lá nos confins do sertão.
(Rocha, 1965, p. 33).

Os epílogos de cada uma das obras introduzem um elemento diferencial ao que fora apresentado nas suas respectivas seqüências inicias. Isto é, o redimensionamento semântico da seara em Jorge Amado, pelo adjetivo “vermelha,” e da terra, em Glauber Rocha, através do adjunto adnominal “do homen,” que neutraliza a dimensão metafísica inicial, apontam para a ação revolucionária utopicamente projetada. Aproximados por esta estrutura cíclica suplementar, o romance e o filme possibilitam uma leitura conjunta em busca de suas semelhanças e diferenças.

As forças da permanência: messianismo, cangaço e as formas da revolução social


Embora postas para serem negadas pela perspectiva marxista de seus autores, no romance e no filme as formas de rebeldia ligadas ao mundo rural nordestino, o misticismo e o cangaço, não se reduzem a uma perspectiva unívoca que os dispusessem em um esquema bipolarizado face ao poder institucional: ordem/desordem, civilização/barbárie, bem/mal, conforme sucede com o primeiro romance a tematizar o cangaço na literatura brasileira: O Cabeleira (1876), de Franklin Távora. Ao invés, esses fenômenos sociais surgem nas obras de Amado e Glauber mediados pelas manifestações culturais populares, a cantoria, o cordel, e pela heterogeneidade de vozes que, ao lado da poesia popular, compõem como persona a fabulação da estória. Neste sentido, e apenas nele, adotam procedimento semelhante a outros dois ficcionistas nordestinos aqui já mencionados, José Lins do Rego e Ariano Suassuna, cujas respectivas obras, Pedra Bonita (1938) e Cangaceiros (1953), e A Pedra do Reino (1971) acercam-se desses mesmos temas através do imaginário popular do sertão ( Farias, 2006).
Interagindo no tecido ficcional e não apenas dispostos como apêndice à trama narrativa, para citarmos ainda o exemplo oposto de Távora, as formas de expressão estéticas correlatas ao homem do sertão não constituem simples matéria ilustrativa do aspecto regional das obras. São, diferentemente, o substrato que alimenta seu processo construtor, estabelecendo uma adequação entre o tema e a forma que o constitui. Bem mais intenso no filme do que no romance, onde esse mecanismo estrutural ainda é cerceado pela voz do narrador, as imagens do cangaceiro e do beato apresentam-se, segundo diz Ismail Xavier (1983, p. 150), referindo-se a Deus e o diabo na terra do sol, “marcada [s] pelo impulso de interpretações abrangentes das formas de vida e de consciência presentes no Nordeste rural”. As figuras do cangaço e do messianismo, deflagradas por essa perspectiva abrangente, desempenham no universo ficcional dos dois autores papéis e funções opostos, mas não mutuamente excludentes. São acatadas positivamente como forças pré-revolucionárias e condenadas em nome das transformações sociais como alienação.
Em Seara vermelha, o ABC cantado pelo tocador Bastião a pedido do bando de Lucas Arvoredo, registra, na sua imagética oscilatória, a ambivalência através da qual o cangaceiro é percebido no imaginário rural:

Lá vem Lucas Arvoredo
Armado com seu fuzil.
O sertão treme de medo,
Já matou pra mais de mil...
[...]
Lá vem Lucas Arvoredo
Armado com seu fuzil...
Menina, não tenha medo,
Meu apelido é gentil...
[...]
(Amado, 1981., p. 222).

Nas estrofes sucedem-se alternadamente a imagem do terror e da violência e a da gentileza e sedução, oscilando o ABC entre uma valoração positiva e outra negativa do “fora da lei”. Neste movimento pendular, o “rebelde primitivo” conforma-se tanto à imagem do “bandido nobre” de que fala Hobsbawn (1976, p. 36), quanto à do seu oposto: o cangaceiro vingador, cuja crueldade não encontra limites. A vingança pela perda da terra é, aliás, o motivo apontado por Arvoredo para entrar no cangaço: “Nóis tava bem de seu em nossa terra, viero e tomaro ela [...] Matei o homem, caí no cangaço [...] tou é me vingando” [sic]. ((Amado, 1981, p. 219). “Malvadeza” e “generosidade” são os termos através dos quais o personagem é configurado nas reflexões do tocador, (cf. Amaro,1981 , p. 221). De forma análoga, ferocidade e inocência coabitam na descrição que o narrador faz do bando, diante de um brinquedo de mola, num de saques dos cangaceiros pela cidade: “Vestidos de couro, armados até os dentes, revólveres, fuzis e punhais, os rostos ferozes, as barbas crescidas, um odor fétido, mas inocentes e puros, rindo admirados, felizes como criança ante o esperado brinquedo” (Amado,1981, p. 202). Os exemplos dessa dubiedade imagética multiplicam-se ao longo da narrativa e configuram também a forma ambígua como o cangaceiro se insere na estrutura coronelista, funcionando ao mesmo tempo para a contestação e manutenção da ordem vigente.
A representação do messianismo acompanha essa lógica dual, responsável pela simultânea valorização e desvalorização do fenômeno. Concebido no texto como a segunda forma alternativa para o enfrentamento da ordem coronelista, o beato é visto sob a ótica da comunidade sertaneja, referendada em vários momentos pela do narrador, como uma forma de resistência ao mandonismo local, embora suas prédicas desloquem para a esfera do sobrenatural as soluções para os conflitos sociais. Eis como sua entrada em cena na narrativa é descrita pelo narrador: “[...] os coronéis tomando a terra dos lavradores, os imigrantes partindo em levas sucessivas para o Sul, os cadáveres ficando pelas estradas [...] apareceu o beato” (Amado, 1981, p. 235).
No contexto adverso do sertão, o prosélito do messianismo, à semelhança da figura paradigmática de Padre Cícero do Juazeiro, através da qual é forjada a sua imagem, torna-se o suporte mítico de todas as crenças, repositório dos valores mais autênticos, ponto de conexão das carências e anseios de justiça da população oprimida, conforme atestam as várias conotações simbólicas que assume no romance.
Analisando a ideologia dos romeiros nordestinos na literatura de cordel, através das figuras messiânicas de Padre Cícero e Frei Damião, Rejane Vasconcelos Accioly de Carvalho (1972, p. 117-118) atenta para dois aspectos pelos quais as relações “Salvador”- romeiro são percebidas. São elas: a “identificação” e a “detenção do poder”. A elaboração mítica do poder do “Salvador” é, segundo a autora, uma decorrência da percepção que têm os dominados do caráter hostil do poder terrestre, sempre identificado à posse de terra e riqueza. Em conseqüência, o imaginário popular engendra para o “Salvador” um poder que, por ser de outra ordem, ou seja, de dimensões extraordinárias “assume uma conotação de contestação das camadas dominadas face às bases do poder social que os oprime” (Carvalho, 1977, p.118).
As referências à figura do beato em Seara vermelha se inscrevem - através da fala e reflexões dos personagens socialmente desfavorecidos - sob essa perspectiva mítica, atualizando-se-pelos mesmos mecanismos de “identificação” e “elaboração do poder”. As pregações apocalípticas contra os ricos e poderosos, a proposta da distribuição de riquezas pela inversão dos papéis sociais, a contestação à propriedade privada engendram uma identificação da comunidade sertaneja com o líder messiânico. Anexada à percepção de seu poder de taumaturgo, essa identificação conflui para o forjamento da imagem do beato como “santo” e “salvador”. Segundo se pode constatar nas palavras da personagem Zefa, uma de suas seguidoras: “Foi Deus que mandou ele, veio numa nuvem de fogo, quem não obedecer a ele tá condenado... Ele é o santo de Deus, é a língua de Deus, é os oio de Deus” [sic]. (Amado, 1981, p. 251). A imagem do fogo que atesta na fala da personagem o poder sobrenatural do beato vem se juntar, no discurso do narrador, às metáforas extraídas do campo semântico da natureza para caracterizar a figura imponente do “Salvador”, o seu poder de resistir às intempéries e vicissitudes do mundo rural: “Semelhava uma árvore majestosa, um rio caudaloso, uma cachoeira ruidosa [...] balançava ao vento como um bambu, tinha resistência de ferro” (Amado, 1981, p. 235).
Num movimento que contradiz o perfil acima delineado, o texto contrapõe as imagens de “santo”, “salvador” e “taumaturgo”, através das quais a comunidade rural empreende a elaboração mítica do poder do beato, a uma outra onde ele se afigura semelhantemente ao cangaceiro como um “fora da Lei”. Desordem, superstição, loucura, perigo, ameaça passam a ser os termos através dos quais o beato é designado pelos representantes do poder constituído: “Os jornais da capital publicavam artigos dizendo que o beato estava incitando os homens do sertão à desordem, que os mais sãos princípios da civilização cristã [...] perigavam, sucumbiam naquela onda de superstição que tão rapidamente se alastrava por todo o sertão nordestino” (Amado, 1981, p. 257).
Não obstante a simpatia do narrador, o fascínio das camadas desfavorecidas e a ambigüidade que os configura nas páginas de Jorge Amado, o messianismo e o cangaço estão predestinados a sair de cena. Predomina na ótica do livro a condenação de sua forma “ineficaz” de rebeldia “pré-capitalista” (Hobsbawn, 1976). A aliança entre beatos e cangaceiros não é suficiente para evitar o extermínio das duas forças “pré-revolucionárias” representativas (embora ambiguamente) do poder de resistência à ordem coronelista: o poder do rifle e o poder da reza. Na descrição desse extermínio, o romance reescreve as cenas finais de Os sertões, de Euclides da Cunha, onde se registra a derrocada do arraial de Antônio Conselheiro pela quarta expedição do exército. Como no arraial que lhe serve de parâmetro, aqui também os derrotados têm suas cabeças degoladas e exibidas como troféus. O livro que o capitão das tropas vitoriosas resolve escrever sobre os fatos, mesmo não sendo literato, conforme esclarece ironicamente o narrador, leva o significativo título de “O Novo Canudos” (Amado, 1981, p. 266).
O texto se abre agora para uma terceira e última “vereda da salvação”: o caminho revolucionário a ser trilhado pelo “intelectual-proletário”, Juvêncio, que, segundo suas próprias palavras ingressara no partido assim como poderia ter entrado para o cangaço ou para o messianismo (Amado, 1981, p. 288-289). Entre uma e outra opção ele encontra a organização partidária e “a direção justa” para a sua rebeldia, conforme o discurso avaliatório do narrador O romance anuncia, assim, essa terceira possibilidade, contrapondo-a às anteriores: “– Agora vai se acabar os cangaceiros e os beatos... Vai ser a nossa vez” (Amado, 1981, p.331). Quem faz o vaticínio é o personagem Zé Tavares, um dos membros do partido comunista, encarregado de organizar um comitê municipal em São Paulo. O decreto do fim dessa “anomia” social da República Velha, para utilizar aqui a expressão pela qual o poder constituído enxerga a eclosão dos movimentos de rebeldia no mundo rural, é ainda decretada no romance pelo “camarada” Vitor, que assim prediz o desaparecimento desses fenômenos sociais: “Os beatos e os cangaceiros acabarão no dia que os sertanejos tiverem consciência política” (Amado, 1981, p. 334). A preparação para a ação revolucionária pressupõe, portanto, a conscientização da “classe operária”, cujo papel histórico é devidamente ressaltado por um dos líderes, numa reunião do comitê em Natal: “[...] cada companheiro deve estar [...] consciente das suas responsabilidades, do papel histórico da classe operária, e apto a enfrentar a situação” (Amado, 1981, p. 269).
A certeza tranqüilizadora em um futuro promissor via revolução é metaforizada pela mesma imagética agrícola/botânica que semantiza a ação revolucionária no final do romance: “[...] o poder estava quase nas [...] mãos, como um fruto maduro numa árvore, bastava alçar-se nas pontas dos pés e colhê-las” (Amado, 1981, p. 270-grifos nossos). O “plantio” e “a colheita” no sertão nordestino cabem a Juvêncio. Filiado ao organismo do PCB em São Paulo, participante do levante de 35 em Natal, onde se torna líder de sargentos, suboficiais e cabos, posteriormente trabalhando a serviço do partido no Rio de Janeiro, o personagem é incumbido de retornar à região de origem. A sua missão no espaço sertanejo consiste em dar continuidade ao trabalho realizado pelos correligionários em outras regiões. Os ensinamentos por ele veiculados, mecanicamente interiorizados pelo homem rústico do sertão, constituem os germens das transformações que se anunciam. A iminência da revolução dá conta da “natural” germinação da semente plantada naquela seara, cujo cromatismo do termo que a adjetiva adquire uma dupla conotação: símbolo do sangue vertido no sofrimento e na fome; símbolo da revolução socialista que vem marcar o início de uma nova vida. Sintomaticamente, essa certeza assinalada via metáfora natural guarda o mesmo teor das profecias apocalípticas do beato Esteves ao assegurar a superação dos conflitos terrestres no reino dos céus. A teleologia marxista do romance preserva, pois, a mesma dialética simplista da teleologia metafísica do messianismo, vaticinando, agora, um novo estado de ordem pela “dessacralização do mundo” (Albuquerque, 1996, p. 204). Essa teleologia revolucionária é responsável também pela “conversão” de Juvêncio, que passa de um estado de alienação, inerente à sua condição de camponês, segundo a lógica do romance, a um alto grau de conscientização política. Tal processo transformador ocorre na grande cidade (São Paulo), cuja função nos textos da fase política de Amado é, como já ficou dito atrás, servir de estágio ao fomento da revolução, mediante o ingresso do trabalhador rural numa das células da organização partidária.
Ao contrário das dubiedades que caracterizam o messianismo e o cangaço, o projeto revolucionário é unidimensional e incontestável. A caracterização idealizada de Juvêncio como líder desse processo é inteiramente unívoca. Não sofre as oscilações ideológicas que compõem o perfil do beato e do cangaceiro. A doutrinação política empreendida por ele ao trabalhador rural, quando de seu retorno, é sintomaticamente caracterizada na fala de um deles pelo campo semântico da luz projetada sobre a escuridão. “Tu aprendeu isso na capital? Tu não perdeu tempo e o que tu diz é cuma luz que alumia, abre um clarão nos olhos da gente que tava no escuro...” [sic]. (Amado, 1981, p. 334).
Reafirmando as concepções revolucionárias do escritor militante político, o desfecho de Seara vermelha projeta a sua utopia socialista sem a mediação da burguesia urbana e do proletariado industrial. Essas classes são excluídas do processo revolucionário pela necessidade que tem Jorge Amado de adequar seu “romance proletário” “a um determinado estágio de desenvolvimento das forças produtivas em que, para o autor, não se tem ainda configurado, em sua plenitude, um ‘proletariado’” (Almeida, 1979, p. 115).
Deus e o Diabo na terra do sol dramatiza os fenômenos do messianismo e do cangaço e o tema da revolução reatualizando a mesma lógica interna do romance de Jorge Amado. Isso significa que no filme os dois fenômenos também entram em cena para serem descartados como soluções “nefastas” e “inócuas” aos problemas sociais da estrutura coronelista. Em seu lugar, o filme oferece, à semelhança de Seara vermelha, uma terceira saída: a saída revolucionária.
Pode-se começar a observar essa lógica a partir do resgate da própria concepção do autor acerca dessa representação. A síntese definidora de Deus e o diabo, segundo as palavras do próprio Glauber, é a de que o filme é uma “metáfora revolucionária [...] totalizante” (Glauber apud Gerber, 1977, p. 27). Levado a explicar esta afirmação, o cineasta declara que Deus e o diabo é uma revolução da consciência “uma explosão do inconsciente do camponês do Terceiro Mundo” (Glauber apud Gerber, 1977, p. 27). A afirmação baseia-se nos pressupostos do autor decorrentes das concepções de “estética da fome” e do seu conceito de cultura popular. Ou seja, para o cineasta, os movimentos messiânicos e o cangaço são revoltas (não revoluções) populares contra a opressão, pois se constituem como manifestações alienadas e alienizantes. São rebeliões de líderes dentro de um sistema de opressão, como afirma no debate anexado ao roteiro do filme: “O beato é um rebelde metafísico, o cangaceiro é um rebelde anarquista” (Glauber, 1965, p. 128). Neste sentido, a força popular, consubstanciada pelas rebeliões dos beatos e cangaceiros, é uma força ineficaz, que não conduz à revolução. Conseqüentemente, o filme propõe uma terceira força de rebeldia capaz de ultrapassar as duas primeiras. Esta força se semantiza através do mar, metáfora da rebeldia camponesa, metáfora revolucionária: “A terceira rebeldia é o mar, que não está lá, mas está acontecendo por aí: são os camponeses. Havia um terceiro episódio, sobre a rebeldia camponesa, que não pude fazer porque a fita ia ficar enorme [...]. Acho que a solução encontrada é mais sintética, mais violenta” (Glauber, 1965, p.128).
A diegese do filme não se reduz, obviamente, a esse modelo consciente, mas também não o nega. Problematiza, em termos ficcionais, as concepções do autor, na medida em que oferece uma leitura mais complexa, portanto também ambivalente, dos aspectos em pauta. A tensão dramática pode ser sintetizada na cena da seqüência 464, onde Antônio das Mortes aparece pela segunda vez, agora em diálogo com o cego Júlio, nos escombros de Canudos, cenário da montagem cinematográfica. A fala dos dois personagens apresenta a contraposição dos valores díspares que compõem a trama narrativa. De um lado, a voz do cego, direcionada em defesa das causas populares. Do outro, Antônio das Mortes que prenuncia a revolução pela eliminação da “cegueira” metafísica que grassa no mundo rural sob a forma de Deus e o diabo:

CEGO: A culpa não é do povo, Antônio! A culpa não é do povo!
ANTÔNIO DAS MORTES: Um dia vai ter uma guerra neste sertão. . . Uma guerra grande sem a cegueira de Deus e do diabo. E, pra que essa guerra venha logo, eu, que já matei Sebastião, vou matar Corisco e depois morrer de vez, que nós somos tudo a mesma coisa! (Rocha, 1964).

As últimas palavras do matador de beatos e cangaceiros introduzem uma fratura na oposição dicotômica: estabelece uma complicadora identificação do personagem com aqueles que está predestinado a matar “nós somos tudo a mesma coisa”.
As seqüências iniciais apontam para o elemento desencadeador da intriga: o assassinato do coronel Moraes pelo seu vaqueiro Manuel, em conseqüência da morte e partilha de algumas reses do fazendeiro e a subseqüente perseguição dos jagunços do coronel ao ex-empregado, culminando com a morte da mãe deste e com a sua fuga em direção ao beato Sebastião, seu santo “salvador”. O encontro dos dois personagens e a adesão de Manuel ao misticismo ocorrem em Monte Santo onde o messias prega aos seus seguidores. Manuel entrega-se ao santo em nome da libertação do seu povo. As cenas do Monte Santo acentuam concomitantemente uma dupla imagem do santo e, por extensão, do fenômeno do messianismo: a que se oferece através da percepção dos prosélitos e a que é registrada pela câmara e pelas indicações do roteiro. No primeiro caso, tem-se uma representação que favorece o aspecto positivo do beato. Ele é a esperança de redenção para o oprimido, o anunciador de uma nova ordem para o sertão: a ordem do “santo guerreiro5 contra o dragão da maldade”, antecipando nessa configuração simbólica a imagética de outro filme do autor6. No segundo caso, registram-se os aspectos de histeria e de alienação do santo e de seus adeptos (a abstração do olhar perdido no vácuo, captada pela câmera; a imagética apocalíptica sinalizada como “alienação mística” no roteiro; os gritos dos romeiros registrados como histeria nas rubricas do cineasta e a postura de déspota claramente ressaltada pela câmera no contato do beato com os prosélitos, sobretudo com as prostitutas). Entre uma e outra representação surge a dos poderes constituídos, o padre e o fazendeiro em cujas falas registra-se a condenação do messianismo como ameaça à ordem vigente dos coronéis e ao monopólio dos bens de salvação da Igreja: o santo Sebastião estaria desviando os camponeses do trabalho e assumindo as tarefas específicas ao sacerdócio. A desmistificação maior se dá, no entanto, através de Rosa, mulher de Manoel, que põe em xeque as prédicas do beato como via alternativa de salvação, ao negar as profecias deste acerca da Ilha, espaço utópico da inversão dos papéis sociais, e desnudar o despotismo do santo.
A encenação do cangaço ocorre na segunda parte do filme, introduzida pela legenda que anuncia o encontro de Manuel com Corisco, “o diabo louro”, após o assassinato do beato por Rosa (não por Antônio das Mortes, como este faz supor em cena já transcrita). “ATÉ QUE UM DIA, PELO SIM OU PELO NÃO, SEUS CAMINHOS SE CRUZARAM COM CORISCO E LAMPIÃO...” (Rocha, 1965, p. 74).
Manuel se entrega a Corisco como se entregara ao santo Sebastião. A sua atitude de submissão diante do cangaceiro é a mesma que demonstra frente ao beato. O filme configura nesta duplicidade imagética a segunda forma de opção para a rebeldia do sertão. Rodopiando em torno de si mesmo e falando sem parar, o diabo louro condensa no filme duas representações do justiceiro vingador: Lampião, a quem incorpora após o assassinato do “rei do cangaço” em Angicos pelas tropas policiais, e São Jorge contra o dragão da maldade, numa concretização do vaticínio do santo Sebastião. A imagem do justiceiro vingador, assim como a do beato, sofre, no entanto, o mesmo processo de desmistificação. Curiosamente, é a mulher a maior encarregada desta função. Da mesma forma que Rosa não adere ao misticismo e questiona o messianismo como alternativa de salvação, Dadá, mulher de Corisco, desconstrói a imagem mítica de Lampião, atingindo-o no cerne mesmo do atributo que assegura legendariamente o reconhecimento público do “bandido social”, segundo Hosbawm (1976, p. 54): o destemor. É significativo neste sentido a seqüência 284, que antecede a cena do retrospecto de Corisco com Lampião. “Dadá: Virgolino era grande, mas também ficava pequeno” (Rocha, 1965, p. 101). Logo a seguir, a câmera gira em torno de Corisco/Lampião e a voz do cangaceiro na cena do retrospecto confirma as palavras da mulher, expondo seus temores: “Tenho medo de viver sonhando com a chuva de bala que joguei em cima do bom e do ruim. Tenho medo do inferno e das almas penadas que cortei com meu punhal. Tenho medo de ficar triste e sozinho como uma vaca berrando pro sol! Tenho medo, Cristino, tenho medo da escuridão da morte” (Glauber, 1965, p. 102).
A morte de Corisco por Antônio das Mortes, assim como a do beato Sebastião por Rosa, vem culminar o processo de derrocada das forças da permanência no âmbito rural. Postas em questão as alternativas do misticismo e do cangaço, representadas como “duas faces da mesma metafísica” (Xavier, 1983, p. 98), e cujo processo de desnudamento não se limita à esfera dos personagens, mas ocorre sobretudo no nível da narração, resta examinar a proposta revolucionária do filme.
Diferentementemente de Seara vermelha, a utopia revolucionária em Glauber Rocha não pressupõe a transição direta do estágio de subdesenvolvimento e atraso do mundo rural para a sociedade socialista. No caso de Deus e o diabo, ela é mediada pelos valores do mundo burguês, representados por Antônio das Mortes, personagem enigmático e ambíguo, cujo papel simbólico no filme é, segundo Silviano Santiago (In GARBUGLIO et al.,1987, p. 423), prefigurar a força revolucionária do tenentismo, ligada ao processo de modernização7, em conformidade com a ótica desenvolvimentista do filme. De forma menos incisiva, Jean Claude Bernardet (1978, p. 82), identifica em Antônio das Mortes as contradições e ambigüidades das classes médias urbanas, mas sem correlacioná-lo diretamente ao tenentismo. O filme fornece pistas para que se possam acatar ambas as hipóteses que, de resto, não são excludentes. Pelo papel que exerce na trama narrativa como matador de beatos e cangaceiros o personagem está, como se viu, predestinado a eliminar o atraso do sertão, representado pela metafísica de Deus e do diabo. Em vários momentos do filme ele é nomeado tenente, sua patente na polícia, mas que pode também indiciar sua ligação simbólica com o tenentismo. Embora receba soldo do fazendeiro e do padre para eliminar o santo Sebastião, tarefa que termina não cumprindo porque Rosa se antecipa a ele nesta função, Antônio das Mortes não pode ser simplesmente identificado a um jagunço ou a um matador de aluguel, papel, aliás, que recusa para si. Sua função no filme é mais complexa e pode ser resumida como sendo a de “acelerar o curso da história e precipitar o advento dessa guerra, que será a guerra de Manuel vitorioso”, conforme interpreta ainda Bernardet (1978, p. 80).
A utopia revolucionária consubstanciada pela imagética do mar invadindo a caatinga no desfecho do filme parece corroborar o projeto consciente do autor, apontando para a penetração do espaço urbano no mundo arcaico do sertão. Ou seja, pela metáfora do mar, o filme realizaria a síntese integradora entre o rural e o urbano. O mar poderia, assim, ser visto como a metáfora do progresso que adentraria o sertão, visando a superação das formas primitivas da alienação, semantizadas no texto pelo misticismo e pelo cangaço. Visto desta ótica, o filme ratificaria as profecias de Antônio Conselheiro, parafraseadas pelo beato Sebastião e pelo cangaceiro Corisco através do célebre refrão: “o sertão vai virar mar e o mar virar sertão”. Refrão retomado pela canção do cego Júlio enquanto Rosa e Manuel correm pela caatinga em direção ao mar. Os protagonistas, no entanto, não chegam lá. Rosa fica pelo caminho e Manuel continua a corrida para um destino incerto sem que se tenha a certeza do seu ponto de chegada. A descontinuidade entre a corrida de Manuel e o avanço do mar pela câmera é interpretado por Ismail Xavier como uma fratura na concepção teleológica de história que a proposta revolucionária do filme parece assumir. Conforme diz o ensaísta, “a corrida não veicula propriamente um recado didático, uma palavra de ordem definida do tipo que encontramos no final de um panfleto político [...] Nesse sentido, seu gesto, apesar de projetivo, é uma instância em plena disponibilidade” (Xavier: 1983, p. 72).
Talvez seja essa a diferença fundamental entre o filme de Glauber e o romance de Jorge Amado. Embora compartilhem, por vias diferentes, de análogo projeto de modernização do país, que pressupõe a superação do atraso e subdesenvolvimento do mundo rural, o direcionamento teleológico de Seara vermelha não problematiza o ideário político que o informa. Ao contrário dessa postura dogmática, Deus e o diabo infiltra entre as ações dos personagens e o olhar da câmera uma brecha capaz de minar as certezas ideológicas que teriam motivado a sua produção.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALBUQUERQUE JR., Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e outras artes. Recife: Fundação Joaquim Nabuco; Massangana; São Paulo: Cortez, 1999.

ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. Jorge Amado: política e literatura: um estudo sobre a trajetória intelectual de Jorge Amado. Rio de Janeiro: Campus, 1979. (Contribuições em Ciências Sociais; 3).

AMADO, Jorge. Seara vermelha. 37 ed. Rio de Janeiro: Record, 1981.

_____. O partido comunista e a liberdade de criação. Rio de Janeiro: Horizonte, 1946.

_____. Discursos Acadêmicos, Rio de Janeiro, Publicações da Academia Brasileira, 1969.

BERNARDET, Jean Claude. Os impasses da ambigüidade. In: Brasil em tempo de cinema: ensaio sobre o cinema brasileiro. 3. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978, p. 67-84.

CARVALHO, Rejane Vasconcelos Accioly. A ideologia dos romeiros nordestino na literatura de cordel. Revista de Ciências Sociais. Fortaleza: Universidade Federal do Ceará (1-2), 1977, v. VIII.

FARIAS. O sertão de José Lins do Rego e Ariano Suassuna: espaço regional, messianismo e cangaço. Recife: Editora da Universidade Federal de Pernambuco; Programa de Pós-graduação em Letras da UFPE, 2006.

GALVÃO, Maria Rita e BERNARDET, Jean Claude. O nacional e o popular na literatura brasileira: cinema. São Paulo: Brasiliense, 1983.

GARBUGLIO, José Carlos et. al. Graciliano Ramos: antologia e estudos. São Paulo: Ática, 1987. (Coleção Estudos Brasileiros) .

GERBER, Raquel. Glauber Rocha e experiência inacabada do cinema novo. In: _____. et al. Glauber Rocha. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977, p. 11-39.

HOBSBAWN, E. J. Bandidos. Trad. Donaldson Magalhães Garchagen. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1976.

LEITE, Sebastião Uchoa. Cultura popular: esboço de uma resenha crítica. In: Crítica clandestina. Rio de Janeiro: Taurus, 1986.

REZENDE, Sidney. Ideário de Glauber Rocha, Rio de Janeiro: Philobiblion, 1986.

ROCHA, Glauber. Deus e o diabo na terra do sol. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1965. (Série Roteiros).

______. Deus e o diabo na terra do sol. 1964. 125 min. Home Video; Rio Filme; Versão restaurada e remasteurizada. Edição Definitiva. (Seleções DVD – Coleção Glauber Rocha).

SANTA ROSA, Virgílio. O sentido do tenentismo. 3. ed. São Paulo: Alfa-Omega, 1976.

SUSSEKIND, Flora. Tal Brasil, qual romance? uma ideologia estética e sua história: o naturalismo. Rio de janeiro: Achiamé, 1984.

TOLEDO, Caio Navarro de. ISEB: fábrica de ideologias. São Paulo: Ática, 1977. (Ensaios, 28).

XAVIER, Ismail. Sertão mar: Glauber Rocha e a estética da fome. São Paulo: Brasiliense, 1983.




[1] A edição consultada de Seara vermelha é a de 1981. Em relação a Deus e o diabo na terra do sol, o presente ensaio baseia-se tanto no filme quanto no roteiro publicado pela Civilização Brasileira, cujas alterações na cena fílmica vêm devidamente explicitadas em notas pelo próprio cineasta. Procurou-se cotejar, dentro do possível, as seqüências do roteiro com a encenação fílmica, seguindo, inclusive, a orientação das notas.
2 Ver a propósito dessa vertente FARIAS, 2006.
3 É em termos de fábula que o filme vem definido em seu subtítulo: Deus e o diabo na terra do sol (uma fábula do Nordeste). Nas discussões em torno do filme, Glauber (1965, p. 134) reafirma esse conceito, contrapondo-o ao de realismo.
4 Transcrevemos a seqüência como aparece no filme após as radicais mudanças por que passou o roteiro durante a filmagem.
5 Ver a fala de Sebastião na seqüência 10 do roteiro: “Louvado seja nosso Senhor Jesus, que enviou a espada de São Jorge... chegou com a lança da coragem e com ela vai matar o dragão” (Glauber, 1965, p. 45).
6 Isto é, o Dragão da maldade contra o santo guerreiro, 1969.
7 Sob a perspectiva do processo de modernização do país, a vertente histórica do tenentismo vem desaguar na ideologia desenvolvimentista do Regime Militar de 64, consubstanciando-se, principalmente, no chamado “milagre brasileiro”. Não é à toa , portanto, a adesão posterior de Glauber à política desenvolvimentista do Regime Militar de 64, principalmente ao governo de Golbery do Couto e Silva, conforme declara em vários textos e entrevistas. Ver a propósito as declarações de Silviano Santiago na Mesa Redonda em tono de Graciliano Ramos (GARBUGLIO et al., 1987, p. 423), apontando que sob a ótica do desenvolvimentismo – comum tanto aos projetos estéticos ideológicos de Glauber Rocha e Jorge Amado, quanto ao projeto de modernização do Brasil defendido por grande parte dos modernistas brasileiros – o cineasta em questão “tanto podia ir para o lado de Prestes quanto {...} podia ir para o lado de Golbery, porque as coisas no mundo da modernização, da industrialização estavam sendo definidas um pouco... de maneira... quase que apartidária”. A respeito das idéias políticas de Glauber consultar também REZENDE, 1986.
|
This entry was posted on 23:58 and is filed under . You can follow any responses to this entry through the RSS 2.0 feed. You can leave a response, or trackback from your own site.

1 comentários:

On 23 de setembro de 2009 às 12:08 , Anônimo disse...

Cara Professora Sônia,

pesquisano na internet sobre a obra "O Partido Comunista e a liberdade de criação" acabei me deparando com seu blog.

Estou à procura dessa obra há bastante tempo e não consigo encontrá-la para pesquisa.

Seria pedir demais perguntá-la onde encontrou?

Atenciosamente,

Mário Lúcio de Paula
Rio de Janeiro