Author: Sônia Ramalho de Farias
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Qual o interesse de se retomar hoje uma leitura de Caramuru, arremedo anacrônico[1] de poema épico, publicado em 1781, em Lisboa[2], nos moldes camonianos, por um escritor do arcadismo mineiro, de formação lusa e eclesiástica, tendo como tema a terra e a gente brasileiras, mas que projeta da Europa os seus valores culturais de referência? Acentuar apenas o seu viés “passadista” e sua perspectiva predominantemente colonialista e lusófila seria uma postura por demais óbvia, simplista e redutora.
Os apontamentos aqui apresentados procuram refletir sobre estas questões, oferecendo uma proposta de leitura que, sem descartar a perspectiva apontada, deseja problematizá-la. Para além de uma abordagem unívoca e reducionista, o poema de Santa Rita Durão nos oferece, na sua visão hierarquizante, nas suas contradições e ambigüidades, a possibilidade de lê-lo em uma dupla configuração discursiva: a que representa os valores etnocêntricos da colonização portuguesa no Brasil e a que instaura brechas por onde se pode questionar e desconstruir esses valores, por onde se pode resgatar a voz nativa recalcada pelos paradigmas da colonização. Esta leitura em dupla mão considera, sobretudo, a inserção histórica do texto, tentando ler simultaneamente seu sistema literário e cultural e as relações deste com o discurso religioso transplantado para o Brasil, nas trilhas de uma metodologia interdisciplinar aberta na ensaística contemporânea por Silviano Santiago e, pioneiramente percorrida, em veredas outras, por Antonio Candido.
O entrecruzar de dois momentos históricos que assinalam as condições de produção da obra (as idéias iluministas do séc. XVIII e as remanescentes marcas do quinhentismo), o racionalismo do século das luzes e a ortodoxia religiosa do agostiniano Frei José de Santa Rita Durão deixam suas marcas no texto, sendo responsáveis pelas duplicidades estético-estruturais do poema, pelas suas oscilações ideológicas, pela sua intersecção entre tradição e modernidade. Observando esse movimento interseccional, através da constatação na literatura portuguesa e luso-brasileira da época, da persistência do quinhentismo em pleno século das luzes, o autor de Formação da literatura brasileira, cujo estudo sobre Caramuru é um dos mais significativos da fortuna crítica do agostiniano, caracteriza Santa Rita Durão como “um caso interessante, de tradição inserida em idéias modernas e de idéias modernas vincadas pela tradição” (CANDIDO, 1975: 178).
A leitura do texto a partir das “idéias da época”, embora aqui contempladas, é, entretanto, insuficiente para determinar sua dramática configuração. É preciso, sobretudo, atentar para o lugar em que se inscreve a pretensa epopéia, para os dois contextos envolvidos na trama narrativa, para o duplo lugar cultural e discursivo de onde fala o poema (o europeu e o indígena) e para a tomada de posição do sujeito da enunciação diante do objeto tematizado dentro dos percursos da colonização. Estes, mais do que as idéias da época, configuram a tensão interna da narrativa, seu movimento pendular entre valores socioculturais díspares: os de Portugal e os do Brasil (a “Nova Lusitânia”), os da catequese e os do aborígine, “o povo do Brasil convulso”, conforme representação textual no canto I, estrofe VIII (DURÃO, 1977: 20).
Como diz Eduardo Hoonaert (1992: 142) em Discurso evangélico e discurso colonialista:

“A antropologia, em recentes conquistas, mostrou que todo discurso humano é relativo a um determinado lugar, que não existe discurso senão “situado”, que a leitura a partir das idéias (Geistesgeschichte) é insuficiente: o lugar entra na própria constituição do discurso proferido pelo homem.”

As marcas da tensão histórica no discurso literário de Santa Rita Durão, lidas a partir da teoria do lugar, presentificam-se tanto nas soluções estético-formais do poema, quanto no seu problemático viés nativista e indianista. A exaltação da terra brasílica pela exuberância de sua fauna e flora, a simpatia do narrador pelo que considera os “valores naturais” do indígena, a celebração da natureza – prenunciadora do ufanismo exótico-pitoresco de certa linha do nosso romantismo, nos parâmetros de uma vinculação entre os valores da terra e os valores da pátria, “terra bela”, “pátria grande” (CANDIDO, 1987: 142) – têm no texto uma dupla função. Atestam o confesso nacionalismo do autor, o “amor da Pátria”, apontado em “Reflexões prévias e argumentos” (DURÃO, 1887: 1) como o elemento motivador da composição do poema. Subordinando-se, porém, à preocupação doutrinária da obra, ao proselitismo do autor, funcionam, juntamente com a catequese, erigida ao primeiro plano da obra, como processo ideológico para, no dizer de Candido (1975: 183), justificar e louvar a colonização como empresa religiosa desinteressada”.
O texto remonta aos acontecimentos históricos do séc. XVI, recriando literariamente a história do naufrágio de Diogo Álvares Correia, no Recôncavo da Bahia. Mais especificamente, o célebre episódio em que o nobre vianez – ao contrário de seus companheiros de viagem – tem sua sobrevivência e seu prestígio garantidos junto aos índios graças a um artifício: um tiro de espingarda que não só o salva da antropofagia, como lhe garante o reconhecimento na cultura indígena com o epíteto lendário “filho do trovão”. O português, convertido a herói, passa a viver entre os nativos, casa-se com a filha do chefe indígena, Paraguaçu, leva-a à corte de Henrique II em Paris, onde é batizada com o nome de Catarina, em homenagem à rainha francesa (Catarina de Médicis), que lhe serve de madrinha. Dá-se, posteriormente, o retorno do casal ao Brasil e a celebração da ação expansionista na colônia.
Na observância aos cânones da épica camoniana, cujo modelo paradigmático já é anunciado nas Reflexões que servem de prefácio à obra: “Os sucessos do Brasil não mereciam menos um poema, que os da Índia” (DURÃO, 1887: 1), o poema estruturalmente compõe-se de dez cantos em oitava rima e obedece à divisão tradicional em Proposição, Invocação, Dedicatória, Narrativa e Epílogo. O tratamento, no entanto, distingue-se do de Os Lusíadas pela predominância do maravilhoso cristão (referência a milagres) sobre a mitologia pagã, a qual comparece no canto I, estrofe I como parâmetro negativo para ser recusado: produto da “barbárie” indígena ou européia (neste último caso a “barbárie” da antigüidade greco-romana) e “doutrina do inferno” (Durão, 1977: 19). A preterição da imagética e dos parâmetros referenciais pagãos pelos do cristianismo é motivada pelo momento histórico em que é produzido o poema, o século das luzes, e pela perspectiva teológica do autor. Se o racionalismo iluminista justifica, em parte, o forte amparo historiográfico que subsidia o texto, garantindo-lhe verossimilhança, a teologia cristã norteia o viés doutrinário do poema, especificamente no que se refere à justificativa ideológica da empresa colonizadora pela ação da catequese, concebida textualmente através de um processo de sacralização: “santa empresa”, “santo intento” e operários santos”.
Para acompanhar mais de perto o duplo lugar da instância enunciativa e o movimento oscilatório que a caracteriza, o primeiro aspecto a se pôr em destaque é a filiação cultural da obra. No tratamento dispensado à cultura indígena e à catequese no processo de colonização do Brasil, o poema do frade da Ordem dos Eremitas de Santo Agostinho se insere dentro de uma tradição discursiva. É informada por textos da historiografia portuguesa e luso-brasileira[3], cujos padrões lingüísticos e cuja perspectiva ideológica reduplicam certos padrões lingüísticos e ideológicos observados desde os textos portugueses e europeus produzidos por missionários e cronistas do séc. XVI, conforme vem sendo constatado insistentemente por Silviano Santiago (1970; 1978; 1982; 1989) em sistemáticos e sucessivos estudos. Tomando por base estes textos precursores, entre os quais se destacam, na sua vertente leiga, A Carta Pero Vaz de Caminha (1500) e, na sua vertente eclesiástica, os textos dos jesuítas, a obra de Durão preserva, numa das instâncias discursivas, aquela que assinala a voz narrativa, as marcas eurocêntricas de onde falam tais textos. Marcas responsáveis pelo recalque do elemento de alteridade da cultura indígena, pela tentativa de neutralização do que se manifesta como diferença, pelo forjamento de identidades fictícias entre valores culturais contrapostos. Em suma, pelo desejo de reduzir o outro (o indígena) ao mesmo (o europeu), apagando o choque cultural e a violência decorrente do processo de colonização, ao negar o lugar conflitual da dramatização desse processo. É exemplar neste sentido a estrofe LXXVI do canto X, onde se especifica resumidamente o teor da ação expansionista em termos cordiais:

“Que o indígena seja ali empregado,
E que à sombra das leis tranqüilo esteja
Que viva em liberdade conservado,
Sem que oprimido dos colonos seja;
Que às expensas do rei seja educado
O neófto, que abraça a Santa Igreja,
E que na santa empresa ao missionário
Subministre subsídio o régio erário.”
(DURÃO, 1977: 95).

Numa outra instância discursiva, porém, onde a presença recalcada aflora como sintoma, a narrativa deixa entrever os valores do outro, neutralizados pela cegueira etnocêntrica, estabelecendo a representação desse conflito na fala contraposta dos personagens indígenas não submissos à catequese, como se verá adiante.
Pode-se ler esse duplo movimento em Caramuru pela mediação da leitura que Eduardo Hoonaert faz de Informações das terras do Brasil (1549), do jesuíta Manoel da Nóbrega, livro destinado conforme consta das palavras subseqüentes ao título “aos padres e irmãos de Coimbra”. Nessas informações, Hoonaert (1992: 144) identifica “em germe os diversos elementos dos numerosos discursos que os missionários, no decorrer da história da missão brasileira, produziram, tanto acerca da doutrina como acerca da moral indígena”. Em relação à questão doutrinária, os textos focalizam a ignorância religiosa. Quanto à segunda questão registram a amoralidade da vida indígena, traduzida, sobretudo, pelos seguintes aspectos: a nudez, “a oferta da mulher ao estrangeiro” e a antropofagia. A visão do missionário sobre os nativos não é, no entanto, de todo negativa. Ao lado desses aspectos condenáveis, são exaltados outros, tais como, hospitalidade, fidelidade conjugal, “memória do dilúvio”, “memória do São Tomé” (HOONAERT, 1992: 144).
Dois séculos depois, a literatura de Santa Rita Durão apresenta uma lógica muito próxima, para não dizer idêntica, a dos textos de Nóbrega[4] e dos demais jesuítas, em relação à representação do indígena e sua cultura. O poema, na esteira dos discursos evangelizadores no Brasil colônia, pode distinguir, assim, “entre aspectos nos quais o indígena é semelhante ao português e por conseguinte bom e outros nos quais ele se manifesta diferente do português e por conseguinte mau, errado [...].O erro está em não ser semelhante, em não ser idêntico (Hoonaert, 1992: 145 – grifos do autor).
Na impossibilidade de acompanhar neste ensaio as configurações semânticas que cada um dos aspectos ressaltados assumem na obra de Durão, procura-se aqui pôr em destaque aqueles que na efabulação narrativa nos parecem de maior relevância para justificar ideologicamente a “domesticação” do índio pela catequese: a questão da doutrina religiosa e a antropofagia. O primeiro aspecto assume em Caramuru nuanças distintivas da negatividade com que é concebido no discurso dos jesuítas, sem, no entanto, descartar sua lógica redutora. A ênfase depositada pelos missionários na ignorância doutrinária do indígena merece nas páginas da “epopéia” um viés atenuante, movido pela crença do poeta em uma modelar obediência a uma religião natural (CANDIDO, 1975), que já o predisporia aos ensinamentos cristãos. O canto III do poema, todo ele dedicado ao debate religioso, através do diálogo entre Diogo Álvares Correia e o índio Gupeva, é significativo neste sentido. Apesar de “bárbaro”, Gupeva declara, na estrofe IV desse canto, fé em um único ente supremo “- Um Deus (diz) um tupá, um ser possante/quem poderá negar que reja o mundo, [...]?” (DURÃO, 1977: 61). O herói identifica nas palavras do indígena um sentimento de religiosidade, prenúncio de “Clara Luz de um princípio sempiterno” (DURÃO, 1977: 60). Interpreta, assim, a crença indígena em tupã de acordo com os parâmetros da divindade católica. Em nota da edição de 1887, o autor corrobora a fala de Gupeva e a interpretação que lhe confere Diogo Álvares, adicionando-lhes informações suplementares. Nela, contesta as interpretações que postulam a ignorância religiosa do aborígine, traduzida na célebre forma canônica: “sem F, sem L, sem R”, com que Gandavo[5], confundindo palavras e coisas, interpreta, em Tratado da terra do Brasil (1570), “a ausência de jugo político e religioso entre os brasis” (CUNHA, 1993: 159). Eis a contestação do poeta: “Um Deus – É injúria que se fez por alguns autores aos brasileiros, supondo-os sem conhecimento de Deus, lei e rei. Eles têm a voz tupá com a especial significação de um ente supremo, como sabemos dos Missionários, e dos peritos de seus Idiomas” (DURÃO, 1887: 108).
O resgate da crença indígena pelos princípios do cristianismo se dá ainda via noção de pecado, que o narrador, através das inquirições de seu herói, coloca na boca de Gupeva[6]. Realizado no código lingüístico de Álvares Correia, tendo como tradutora Paraguaçu, que conhece ambos os códigos, o português e o indígena, o debate teológico do canto III aponta para a conversão do gentio, para a implantação da “palavra de Deus” (Santiago, 1970), mediante a qual se opera na catequese a redução dos valores culturais indígenas aos valores europeus. Dois personagens do livro, Gupeva e Paraguaçu, sofrem esse processo de conversão.
A conversão do tupinambá, dramatizada no canto II, ocorre, na falta de um código lingüístico comum entre os interlocutores, por um processo mimético e narcisíco de interiorização da palavra de Deus. Diante da imagem mediadora de Nossa Senhora, o índio responde ao comando do português e repete mecanicamente suas atitudes e gestos, vendo-se nelas refletido como uma imagem no espelho. Observem-se, na estrofe XXX do mencionado canto, as palavras e ações do modelo e a dócil réplica gestual da cópia, tendo o culto ao marianismo de permeio:

“Peçamos, pois, que é Mãe que nos defenda;
Que te dê para ouvir dócil orelha,
E contigo o teu Povo recomenda,
Dizendo o Herói assim, devoto ajoelha.
Gupeva o mesmo faz como fé estupenda;
E pendente de Diogo, que o aconselha;
Levanta as mãos como ele levantava;
E vendo-o lacrimar, também chorava.”
(DURÃO, 1887: 53).


Em tudo similar à mímica dos indígenas descrita por Caminha durante o sacrifício da primeira missa celebrada nas terras de Vera Cruz, a conversão de Gupeva reproduz o sentido ritualístico daquele simbólico ato inaugural que prepara e antecipa a conversão do gentio via representação narcísica. Ato representacional que iria guiar os primeiros passos dos missionários na colônia, conforme atestam os sermões de Vieira e os autos da catequese atribuídos a Anchieta. Processo ritualístico especular assim descrito por Silviano Santiago (1970:8) ao estabelecer em primeira mão a analogia entre os mecanismos miméticos da celebração inaugural no Brasil e os dramatizados na trama (histórica, literária, lendária) de Caramuru:

“Na falta de uma língua comum é, pois, a idéia de imagem refletida, da cópia gestual, da repetição mecânica na superfície do espelho, que governa o convencimento. Catequese primeira (e talvez mágica, se nos lembrarmos por exemplo de Caramuru e seu arcabuz, “o Deus do fogo”) que guarda em si todas as características de um ritual mímico, onde a ausência do texto não impossibilita que os autores se entreguem de corpo e alma (para usar a dicotomia cristã) à nova religião.”

A conversão de Paraguaçu, virgem indígena filha do chefe carijó, escolhida como esposa pelo protagonista, reafirma esse processo mimético de forma ainda mais radical e violenta. A começar por sua descrição física e moral, em tudo contrastante com as características dos demais gentios “essa gente tão nojosa”, conforme o discurso avaliatório do autor na estrofe LXXVIII do canto II (DURÃO, 1977: 55). Distinguindo-se da “turba bruta”, os atributos físicos, estéticos e morais dessa “dama gentil brasiliana” (DURÃO, 1977: 54) a aproximam muito mais do modelo especular da mulher branca, européia, cristã e ocidentalizada. Possui “cor alva como a branca neve”, tem funções delicadas, apresenta-se vestida e não nua como as outras índias, é honesta, virtuosa, recatada. Como se não bastassem esses predicados – que justificam a etnocêntrica escolha narcísica do herói – Paraguaçu encontra-se já na trama narrativa (canto II, estrofe LXXVII) falando o idioma do colonizador a ela transmitida por um “português escravo”. (DURÃO, 1977: 54).
O domínio (parcial) do código lingüístico estrangeiro pela indígena, aliado ao fascínio que seus encantos despertam, leva o protagonista a reduplicar aqui a indecidibilidade[7] platônico-socrática diante da escritura, concebida no fonocentrismo metafísico filosófico simultaneamente como veneno e remédio, “pharmakon” (DERRIDA, 1972: 164). Pelo conhecimento da língua portuguesa Paraguaçu se afigura ao personagem principal do enredo duraniano da seguinte forma: “cômodo instrumento” (remédio), necessário ao “santo intento” da empresa colonizadora. (Vale lembrar o episódio atrás descrito, onde ela serve de mediadora no debate religioso do canto III). Pelos atributos físicos que fascinam e seduzem o herói ela representa perigo (veneno), é ameaça à castidade cristã do herói. A resolução do conflito e da indecidibilidade entre os dois significados atribuídos a Paraguaçu (remédio e veneno) é assim traduzida na estrofe LXXXV do canto II, onde essa tensão é ficcionalmente tematizada: “Estuda no remédio do perigo: / - Que pode ser? Sou fraco; ela é formosa... / Eu livre... ela donzela... Será esposa”. (DURÃO, 1977: 57). Se o nobre português sai ileso do conflito entre a razão, posta a serviço da causa evangélica, e a paixão, mitigada pela prudência que recomenda a consumação do amor apenas pela união conjugal, o mesmo não acontece com a heroína.
Unindo-se a Diogo Álvares, Paraguaçu abdica de seus valores culturais e identitários de origem, incluindo-se entre estes os dois pretendentes de sua raça, que há muito a disputam: o tupinambá Gupeva e o caeté Jararaca (gente incapaz de amar, na opinião de Diogo, referindo-se ao primeiro índio). Transplantada em viagem a Paris, onde recebe o batismo na corte de Henrique II, perde seu nome indígena para assumir o prenome da rainha católica Catarina de Médicis e o sobrenome do marido, passando a chamar-se Catarina Álvares. A redução de seus valores é de tripla ordem: religiosa, lingüística e cultural, ao contrário de Diogo, que ao ser simbolicamente batizado pelos indígenas de Caramuru (“peixe do mar”)[8], alusão à forma como o náufrago aportou nas costas da Bahia, não sofre nenhum processo redutivo em relação à sua cultura. Ao invés, a reafirma, pelo estatuto de herói e deus que assume junto aos indígenas.
À semelhança dos romances indianistas de Alencar, sobretudo Iracema, a união luso-tropical que funda a nação brasileira não se dá em Caramuru pela fusão harmônica das duas culturas envolvidas, a exemplo de que faz supor o discurso da cordialidade na penúltima estrofe do poema atrás já comentada. Afirma-se, contrariamente, por um processo de hierarquização redutor da cultura do país colonizado ao do colonizador, o que é, aliás, inerente a todo e qualquer processo de colonização. O verbo domar e seus equivalentes semânticos (amansar, domesticar), de forte conotação zoomorfizante, utilizados com abundância em Caramuru para semantizar a conversão do índio / “fera” ao cristianismo, transmudando-o de “índio brabo” a “índio manso”, em substituição ao verbo plantar e seus derivados[9] (semear, semente), que configuram metaforicamente no discurso dos missionários o trabalho espiritual da evangelização, trai o sentido violento que a catequese assume no texto duraniano. Violência esta que a voz do narrador, apresentando os fatos a partir da totalidade do lugar português, procura encobrir ao apagar as marcas da submissão no processo de conversão do gentio.
A fala contraposta dos intrépidos personagens indígenas não submissos à catequese e que não se deixam, portanto, converter, Jararaca e Bambu, desconstrói, no entanto, o sentido positivo da conversão, atribuindo-lhe significado diverso: traição.[10] É como vil traidor que Gupeva é referido na fala de Jararaca pela sua submissão aos poderes “mágicos” do “deus do trovão”. A prestidigitação de Caramuru é interpretada pelo caeté, no canto IV, estrofe XXXVIII, como “de nigromancia torpe ensaio”, “impostura”, “falso raio” (DURÃO, 1977: 81). Nesse movimento oposto de dessacralização dos valores do mesmo pelo outro, o próprio português é desmistificado. Converte-se de herói, “deus do fogo”, a impostor: vilão. A fala de Jararaca, proferida no contexto em que declara guerra aos tupinambás, enumera em detalhes as conseqüências nefandas advindas dessa primeira “conversão” de Gupeva pelo poder do fogo. Observe-se a propósito os seguintes versos da estrofe XXXIII do canto IV:

“Prostrado o vil aos pés desse estrangeiro,
Rende as armas com fuga vergonhosa,
E corre voz que o adora, lisonjeiro,
E até lhe cede com o cetro a esposa.
E que pode nascer de erro grosseiro,
Senão que, em companhia numerosa,
As nossas gentes o estrangeiro aterre,
E que a uns nos devore, outros desterre?”
(DURÃO, 1977: 80).


A ingerência do estrangeiro na cultura indígena passa, pois, a significar, a partir do lugar do índio (lugar perdido pela violência), escravidão, cativeiro, desterro, opressão e morte. Ou seja, dizimação de seu povo e de sua cultura, eliminação radical da alteridade. Vista dessa ótica, a colonização assume seu verdadeiro sentido de dominação, conforme vem ainda exemplarmente dramatizado na estrofe XXXV, em que Jararaca conclama todas as nações indígenas aliadas aos caetés (mangues, potiguares, carijós) à guerra contra os tupinambás, comandadas agora por Diogo Álvares:

“Vereis as nossas gentes, desterradas,
Entre os tigres viver, no sertão fundo,
Cativa a plebe, as tabas arrombadas,
Levando, para além do mar profundo,
Nossos filhos e filhas desgraçadas;
Ou, quando as deixem cá, no nosso mundo,
Poderemos sofrer, Paiaias bravos,
Ver filhos, mães e pais feitos escravos?”
(DURÃO, 1977: 80-81).

Constata-se, portanto, que o poema de Durão, em relação à questão da evangelização, abre-se à possibilidade de uma dupla leitura, a partir do lugar em que os fatos são observados. Assim, um mesmo acontecimento objetivo recebe cargas semânticas opostas, dependendo do lugar cultural de seus intérpretes, passando a significar simultaneamente conversão (na perspectiva colonialista do português) ou traição (na perspectiva desconstrutora do indígena). Considerando esta dupla semantização, o poema oscila entre um conservadorismo etnocêntrico (caracterizado pelos padrões europeus reduplicados no texto) e entre um pensamento questionador do etnocentrismo (caracterizado pela negação desses padrões).
O mesmo movimento pendular entre o eurocentrismo e sua desconstrução pode ser observado a propósito da antropofagia, tematizada, a exemplo da evangelização, sob um duplo aspecto: positivo e negativo. No discurso de Diogo Álvares e na perspectiva do narrador a antropofagia reduz-se a “infame gula” “crime”, “selvageria”, “nigromancia”, “barbárie”. Afirma-se, assim, sua total negatividade. Tais noções espraiam-se ao longo de todo o poema, a começar na invocação ao príncipe D. José, mais especificamente na estrofe V do canto I, onde o poeta adverte para a prática do canibalismo que é necessário combater, visando à expansão do império português nas terras americanas: “Devora-se a infeliz, mísera gente; / E, sempre reduzida a menos terra, / [...] E que, livrando desse abismo fundo, / Vireis a ser monarca de outro mundo” (DURÃO, 1977: 18).
Instaurando a oposição textual entre civilização e barbárie, a antropofagia, contraposta aos valores da civilização ocidental, os valores europeus textualmente acatados, é associada por analogia aos rituais sacrificiais da antiguidade pagã, eles também “bárbaros”: “espécies vulgares na História”, como explica o autor em nota da edição de 1887 (DURÃO: 40).
A analogia negativa com o modelo da Europa recusado, o pagão, aponta para a cegueira do poema em relação à real significação da antropofagia entre os indígenas. Isto é, para seu sentido ritualístico “de transculturação”, ou melhor “transvaloração”, “capaz tanto de apropriação como de expropriação, desierarquização, desconstrução”, conforme interpreta Haroldo de Campos (1983: 109) o sentido da antropofagia cultural oswaldiana por analogia ao ritual antropofágico do indígena. Sentido este já inscrito (insinuado), ao lado do seu oposto, barbárie, na letra do poema de Durão, através da fala do índio Bambu. Sobrevivente da guerra entre caetés e tupinambás, Bambu recusa a liberdade que “generosamente” lhe oferece o herói português. Na recusa, deixa entrever o caráter ritualístico da antropofagia na acepção de transculturação que lhe atribui o poeta do concretismo: incorporação no seu corpo dos atributos (positivos) do inimigo, embora no poema não se frise a positividade deste ritual, conforme se pode ler no canto V, últimos versos da estrofe LXIII e versos II a VI da estrofe subseqüente:

“Corpo meu não é já, se anda comigo,
Ele é corpo em verdade do inimigo.
[...]
Forma-se cada dia do alimento,
E faz a nutrição, que se confunda:
Vês tu a carne aqui, que mal sustento?
Não a reputes minha: só se funda
Na que tenho comido aos adversários
Donde minha não é, mas dos contrários.”
(DURÃO, 1887: 164).

Tal caráter ritual da antropofagia encontra-se, como lembra Silviano Santiago (1977:4)[11], aberto e corajosamente afirmado nas notas de Ubirajara (1872) nos seguintes termos: “os restos do inimigo tornavam-se, pois, como uma hóstia sagrada que fortalecia os guerreiros [...] não era vingança; mas uma espécie de comunhão da carne pela qual opera-se a transfusão do heroísmo” (Alencar, s/d: 172).
Neste sentido, para recuperar ainda as palavras de Haroldo de Campos (1983:109 – grifo do autor), “o canibal era um ‘polemista’ (do gr. pólemos = luta, combate), mais também um ‘antologista’: só devorava os inimigos que considerava bravos, para deles tirar proteína e tutano para o robustecimento e a renovação de suas próprias forças naturais...”
A obra de Santa Rita Durão, na sua oscilação ideológica, recupera esse sentido polêmico do ritual antropofágico, ao mesmo tempo em que o nega, ao afirmá-lo como barbárie. No texto, o “selvagem”, visto sob a perspectiva eurocêntrica da colonização e do discurso da Igreja no Brasil, adquire uma dupla feição. A do “bom selvagem” (Montaigne e Rousseau), representados por Paraguaçu e Gupeva (pós-convertido), cristianizados e submissos (domesticados) pela conversão. E a do “mau selvagem”, Jararaca e Bambu, irredutíveis aos paradigmas do colonizador e às virtudes cristãs. Através desses últimos, instaura-se uma fissura dialógica no discurso dogmático e unívoco da instância enunciativa, fraturando o lugar a partir do qual ela se constrói, o lugar português. Fratura que não abole os valores hierárquicos que lhe servem de parâmetros, mas que os problematiza, conservando na representação ficcional tanto as acepções afirmadas, como aqueles que se negam: conversão/ traição; selvageria/ transculturação.
“Encenação de cultura, encenação de barbárie”, para jogar aqui livremente com o título benjaminiano[12], Caramuru constitui, segundo Antonio Candido (1975:183), uma réplica a outro poema épico do arcadismo, Uraguai, publicado em 1769, portanto doze anos antes do livro de Durão, pelo antijesuíta Basílio da Gama. O propósito de Durão parece ser, de acordo ainda com Candido (1975: 183), contestar a perspectiva laica, civil e pombalina do seu conterrâneo mineiro, buscando resgatar os valores da Companhia de Jesus conforme o espírito da Viradeira. As condições de produção da obra e as possíveis intenções autorais, embora confirmadas no nível manifesto do poema, não são, todavia, suficientes para esgotar-lhe a significação. À revelia mesmo da orientação ideológica da tentativa épica de Durão e do seu proselitismo religioso, o texto se abre a outras vozes que emergem dos subterrâneos da história para questioná-lo.


NOTAS

* Ensaio publicado in Anuário brasileño de estúdios hispânicos, xv. Brasília: Ministerio de Educación y Ciência. Embajada de España en Brasil, 2005, p.201-212.
[1] Segundo Antonio Candido (1975:.177) “as tentativas épicas foram a debilidade e o anacronismo mais flagrante do séc. XVIII, não obstante tão aferrado ao senso das proporções e culto das formas naturais”.
[2] Foram consultadas aqui a edição completa do poema, de 1887, e a antologia da Agir (1977) organizada por Hernani Cidade. As citações da edição de 87 foram atualizadas por nós de acordo com as normas ortográficas da língua portuguesa em vigor.
[3] O próprio Durão (1887: 4) menciona em Reflexões e argumentos algumas de suas fontes bibliográficas: Rocha Pita, Pe. Simão de Vasconcelos, Francisco de Brito Freire.
[4] Na edição de 1887, o padre Manuel da Nóbrega é citado em nota onde o próprio Durão explicita a sua fonte de consulta sobre a memória de São Tomé entre os indígenas. Ver DURÂO, 1887: 112, nota 29 do canto III.
[5] “A língua deste gentio toda pela Costa he, huma: carece de três letras – scilicet, não se acha nella F, nem L, nem R, cousa digna de espanto, porque assi não têm Fé, nem Lei, nem Rei; e desta maneira vivem sem Justiça e desordenadamente”. (GANDAVO, 1980: 52).
[6] Ver DURÃO, 1977: 60, canto III, estrofe III.
[7] Utilizamos o termo no sentido que o emprega Derrida (1972: 217) ao analisar a ambivalência do discurso filosófico platônico/socrático diante da escritura. Ver ainda a propósito Santiago (1976: 49).
[8] Vale salientar que no poema Durão traduz equivocadamente o significado etimológico de Caramuru por “Dragão do Mar”, ao invés da acepção correta conforme registrada acima.
[9] Uma leitura do verbo plantar e seus equivalentes semânticos no discurso da catequese no Brasil encontra-se em Santiago (1970).
[10] A propósito do duplo sentido que a catequese assume no processo de colonização do Brasil (conversão/traição), a depender respectivamente do lugar português ou do lugar indígena, ver ainda HOONAERT (1992: 149).
[11] Texto mimeografado, sem título. Não nos foi possível localizar nenhuma referência acerca de sua publicação.
[12] Alusão ao título Documentos de cultura, documentos de barbárie (BENJAMIM, 1986).


BIBLIOGRAFIA

ALENCAR, José, s/d, Ubirajara, São Paulo, Tecnoprint.


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CAMPOS, Aroldo, 1983, “Da razão antropofágica: diálogo e diferença na cultura brasileira”, Boletim Bibliográfico Biblioteca Mário de Andrade, vol. 44, n I/4, pp. 107-127, São Paulo, Secretaria Municipal de Cultura da cidade de São Paulo.

CANDIDO, Antônio, 1975, Formação da literatura brasileira: momentos decisivos, vol. I, 5. ed., Belo Horizonte, Itatiaia; São Paulo, EDUSP.

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GANDAVO, Pero de Magalhães, 1980, Tratado da terra do Brasil: história da província de Santa Cruz, Belo Horizonte, Itatiaia; São Paulo, Edusp.

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_____, (org), 1976, Glossário de Derrida, Rio de Janeiro, F. Alves.

* Ensaio publicado in Anuário brasileño de estúdios hispânicos, xv. Brasília: Ministerio de Educación y Ciência. Embajada de España en Brasil, 2005, p.201-212.
[1] Segundo Antonio Candido (1975:.177) “as tentativas épicas foram a debilidade e o anacronismo mais flagrante do séc. XVIII, não obstante tão aferrado ao senso das proporções e culto das formas naturais”.
[2] Foram consultadas aqui a edição completa do poema, de 1887, e a antologia da Agir (1977) organizada por Hernani Cidade. As citações da edição de 87 foram atualizadas por nós de acordo com as normas ortográficas da língua portuguesa em vigor.
[3] O próprio Durão (1887: 4) menciona em Reflexões e argumentos algumas de suas fontes bibliográficas: Rocha Pita, Pe. Simão de Vasconcelos, Francisco de Brito Freire.
[4] Na edição de 1887, o padre Manuel da Nóbrega é citado em nota onde o próprio Durão explicita a sua fonte de consulta sobre a memória de São Tomé entre os indígenas. Ver DURÂO, 1887: 112, nota 29 do canto III.
[5] “A língua deste gentio toda pela Costa he, huma: carece de três letras – scilicet, não se acha nella F, nem L, nem R, cousa digna de espanto, porque assi não têm Fé, nem Lei, nem Rei; e desta maneira vivem sem Justiça e desordenadamente”. (GANDAVO, 1980: 52).
[6] Ver DURÃO, 1977: 60, canto III, estrofe III.
[7] Utilizamos o termo no sentido que o emprega Derrida (1972: 217) ao analisar a ambivalência do discurso filosófico platônico/socrático diante da escritura. Ver ainda a propósito Santiago (1976: 49).
[8] Vale salientar que no poema Durão traduz equivocadamente o significado etimológico de Caramuru por “Dragão do Mar”, ao invés da acepção correta conforme registrada acima.
[9] Uma leitura do verbo plantar e seus equivalentes semânticos no discurso da catequese no Brasil encontra-se em Santiago (1970).
[10] A propósito do duplo sentido que a catequese assume no processo de colonização do Brasil (conversão/traição), a depender respectivamente do lugar português ou do lugar indígena, ver ainda HOONAERT (1992: 149).
[11] Texto mimeografado, sem título. Não nos foi possível localizar nenhuma referência acerca de sua publicação.
[12] Alusão ao título Documentos de cultura, documentos de barbárie (BENJAMIM, 1986).
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1 comentários:

On 21 de julho de 2018 às 15:38 , Joana disse...

Professora Sônia!

Análise perfeita! Parabéns!!