Author: Sônia Ramalho de Farias
•23:13

Uma leitura conjunta dos contos “O mar é bem ali”, “Rita e o cachorro” e “Sariema”[1], de Rinaldo de Fernandes, motiva, embora de forma indireta, uma reflexão acerca da controvertida questão de “gênero” (sexual) na literatura. Principalmente considerando-se a insistência com que determinada vertente da crítica contemporânea feminista, a chamada “ginocrítica”[2], tem reivindicado as possíveis marcas da voz autoral em textos produzidos por e sobre mulheres, como se essas marcas pudessem por si só conferir legitimidade à representação da mulher na escrita ficcional ou poética. Problematizando tal premissa, os contos de Rinaldo desdobram-se em duas instâncias distintas. A instância autoral masculina, não dramatizada na diegese, e a instância enunciativa, conduzida por uma narradora-protagonista em primeira pessoa (“O mar é bem ali”) ou por um modo narrativo aparentemente dialógico, caso dos dois outros contos, onde a história é apresentada através de uma “interlocução” sem resposta. Nos três contos, a fala textual, emancipada da tutela do autor, desnuda questões existenciais relativas à condição feminina em determinado contexto sociocultural.
Assim, em três modos narrativos mais ou menos recorrentes, delineiam-se três perfis de mulheres simultaneamente distintos e semelhantes em suas trajetórias de vida e traços identitários. A narração anônima, em primeira pessoa, da professora de primário aposentada e “velha poeta” de “O mar é bem ali” abre espaço ao diálogo com um visitante imaginário, para quem a protagonista recita seus poemas. Diálogo este motivado por uma presença insidiosa e invisível (um porco, vem-se a saber depois), que ronda as imediações de sua quitinete e fuça sua porta, despertando-lhe expectativas e fantasias ocultas, e com quem a protagonista passa, após aprisioná-lo, a conviver e “dialogar”, substituindo por essa aparição inusitada aquela primeira visita fantasmal. Esta voz narrativa solitária, cujos dois interlocutores recebem o significativo epíteto de “Ninguém”, ecoa na conversa/confidência que a também escritora (poeta e contista bissexta), jornalista desempregada e ex-revisora de textos, sustenta com o seu cão, em “Rita e o cachorro”. As duas falas encontram ressonância na da “jagunça” Sariema, que, à semelhança de Riobaldo, de Grande sertão: veredas, ou do narrador-personagem de Sargento Getúlio, de João Ubaldo, narra a sua história a um interlocutor de fora, inominado e mudo, no conto homônimo, “Sariema”, inspirado em outro texto de Guimarães Rosa, a novela “A hora e a vez de Augusto Matraga”.
No plano fabular dos dois primeiros contos, o elo aproximativo é mais evidente. Trata-se de duas mulheres letradas, numa curva sócio-existencial descendente, praticamente à margem do sistema produtivo e do convívio comunitário, vivendo confinadas e sozinhas em exíguos e isolados espaços de onde contemplam a vida como espectadoras e resgatam, através de suas reminiscências e conversas com seres imaginários ou animais, suas histórias de perda, morte, traição, abandono e solidão, tendo a amplitude do mar como contraponto. A narradora de “O mar é bem ali” rememora, numa praia da cidade de Fortaleza, uma tripla perda: a do noivo, que a deixa por uma comerciária, a do pai, vítima da tortura do regime militar de 64, e a da mãe, cuja morte é infantilmente vivida por ela como um retorno ao útero materno: “minha mãe era o mar onde eu bebia”. A história da personagem principal de “Rita e o cachorro”, embora circunstancialmente diversa, é marcada por situações e experiências mais ou menos próximas às da protagonista do primeiro conto. É, também como ela, traída pelo namorado. Sofre pelo desemprego a mesma desqualificação profissional e social que a aposentadoria e a velhice conferem à professora. Vive um equivalente confinamento: desloca-se de São Paulo para a imaginária e semideserta praia de Pomar, na Paraíba, onde assume um subemprego, o de garçonete de um restaurante, cujo gerente a trata mal. Analogamente à outra, cujo espaço recluso metaforiza-se pela significativa imagética do “barco trepado num abismo”, a reclusão de Rita se traduz pelo convívio, em uma pequena casa, com um animal, o cão confidente, Pet, que recolhe da rua, para quem fala de paixão, de suas experiências sexuais, do mar em noite enluarada, de poesia e do medo da morte. O cachorro, de forma similar ao porco da narrativa anterior, vem substituir um vazio, aqui duplamente configurado: pela morte (de um outro cão, Rex, a quem a mulher tratava maternalmente, no apartamento alugado na Barra Funda, onde vivia em São Paulo), e pela traição do namorado, o “pilantra” Pedro, que nos últimos tempos de relacionamento ameaçava lhe bater. A traição do homem motiva um crime passional por parte da protagonista e sua conseqüente fuga de São Paulo, tornando-a, portanto, uma fora-da-lei, conforme sugere o texto.
No terceiro conto, transmuda-se o cenário do mar para o sertão, modifica-se a caracterização da mulher, mas não sua condição ambígua de ser social, ao mesmo tempo dentro e à margem do sistema, num contexto sociocultural que lhe é adverso. Ao contrário, a marginalidade agora se acentua, pois se trata de uma “jagunça” – do bando de Seu Joãozinho Bem-Bem – com duas mortes nas costas. Personagens e enredo são adaptados, como se disse, da novela do escritor mineiro com um deslocamento de foco narrativo. Passa-se de uma narração em terceira pessoa, por um narrador anônimo, não participante da história, que elege como personagem principal uma figura masculina, Augusto Matraga, para um ponto de vista feminino e interno, em primeira pessoa, “auto-diegético”, como nos outros dois textos. A mudança de perspectiva não deixa de ser significativa. Traz para o centro dos eventos narrados, conferindo-lhe voz, ação e sentimentos, uma personagem secundária e muda, que no conto de Guimarães Rosa permanece nos bastidores, aparecendo apenas momentaneamente para enquadrar a violência machista do todo poderoso fazendeiro Nhô Augusto Esteves, antes de sua desmoralizante queda vertiginosa como Matraga. Ao assumir o relato, Sariema suplementa a história do narrador roseano, vendo os fatos a partir do lugar em que se situa: o da mulher oprimida e reificada dentro do código de “homência” rural do sertão, prostituta, leiloada como objeto em praça pública numa quermesse de Igreja, sob os aplausos do público masculino, arrebatada dos braços do capiau com quem namora, Orósio. E ainda rejeitada e humilhada posteriormente, uma segunda vez, pelo manda-chuva local que a recusa sexualmente, quando verifica nela, sob a iluminação de azeite, as características físicas que os homens do povoado lhe atribuem através do zoomorfizante epíteto de Sariema. Na versão de Sariema, invertem-se os papéis sociais que a personagem vive na narrativa do autor de Sagarana. Passa de “mulher-à-toa” à mulher-guerreira, de prostituta à esposa de Orósio, que agora compartilha com ela “a condição jagunça” no mesmo bando. E, talvez o mais importante do ponto de vista de sua lógica, a protagonista converte-se de vítima da violência masculina à vingadora da própria honra, ao assassinar Matraga, cujo destino final também é modificado nessa leitura interpretativa da história de Rosa. Ao invés de sublimar pelo misticismo os desejos da carne e morrer lutando em defesa do oprimido contra Seu Joãozinho Bem-Bem, como ocorre no conto matriz, Matraga comete um último ato de violência dirigida à mulher, o estupro. A vingança funciona, assim, à semelhança da exercida por Rita no conto anterior, como uma contraprestação, o pagamento de um débito[3]. Possibilita à protagonista devolver ao agressor, e, por extensão, à sociedade, as ofensas e humilhações sofridas. A recusa social que a troca de papéis acarreta em “Sariema” é coroada no desfecho do conto pela rejeição do epíteto que a discrimina identitária e socialmente: “– Não tem mais nenhuma Sariema! Não tem mais, não!”. O grito de vitória da protagonista parodia ironicamente, invertendo-lhe o sentido, a fala do Major Consilva (repetida como refrão por seus capangas, e interiorizada, posteriormente, pelo próprio Matraga) ao decretar, no contexto da narrativa de Guimarães Rosa, a exclusão de Nhô Augusto da estrutura do mandonismo local.
Se em “O mar é bem ali” a mulher sofre passiva e nostalgicamente a sua situação social, driblando apenas pelo imaginário o abandono, o confinamento e a solidão, “Rita e o cachorro” já sugere uma certa forma dúbia de resistência feminina pelo instrumento ambígua da vingança. Esta, embora termine em última instância reafirmando os valores sociais pelo “gesto final de reciprocidade que toda vingança fatalmente engendra”[4], não deixa de ser uma atitude alternativa de afirmação individual, uma maneira de reinterpretação da sociedade pelo indivíduo. Sariema radicaliza essa afirmação reinterpretativa, não só pelo mecanismo análogo da contraprestação social realizada através da vingança, que lhe possibilita fechar o ciclo de sua trajetória, aberto na narrativa de Rosa, mas também porque reinventa seu destino por meio das máscaras sociais opostas que cria para si, em contraposição àquela que a estigmatiza no meio rural brasileiro tematizado na novela em pauta.
Nas diferentes possibilidades que o fingimento ficcional propicia, os contos de Rinaldo buscam iluminar a alteridade feminina, delegando voz à própria mulher para que fale de sua outridade e exprima, sem mediação tutelar, sua forma de situar-se e resistir numa sociedade ainda com fortes traços patriarcais. Com isso, alinham-se ao lado de significativos títulos que representam a mulher na nossa literatura contemporânea, independentemente do gênero que possa distinguir a identidade sexual do autor.


NOTAS:

[1] O primeiro e o terceiro contos foram originalmente publicados no jornal literário Rascunho, de Curitiba/ PR, respectivamente em março de 2003 e novembro de 2004. O segundo é ainda inédito.
[2] O termo é utilizado por uma das principais representantes da crítica literária feminista norte-americana, Elaine Showalter, que em 1977 publica A literature of their own: british women novelists from Brontë to Lessing. A ensaísta denomina essa sua fase de “ginocrítica” pelo fato de debruçar-se exclusivamente sobre a pesquisa, resgate e releitura da literatura produzida por mulheres, em detrimento da produção literária masculina. Ver, a propósito, GEHA, Clélia Reis. Um olhar feminista em busca de Sula e da canção de Solomon. Dissertação de Mestrado. Recife: Programa de Pós-Graduação em Letras e Lingüística da UFPE, março de 1999, p. 32.
[3] A concepção de vingança como contraprestação social e forma de reivindicação da sociedade pelo indivíduo é desenvolvida por Roberto da Matta na sua leitura da novela de Guimarães Rosa aqui cotejada. Ver MATTA, Roberto da. “Literatura-antropologia”. In: Cadernos da PUC/RJ, prática de interpretação textual. Rio de Janeiro: PUC, 1975, pp. 101-117.
[4] Idem, ibidem, p. 112.
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