Author: Sônia Ramalho de Farias
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Pressupostos Regionalistas Para Um Projeto Literário Nacional: José Lins Do Rego E Ariano Suassuna


As preocupações regionalistas de Lins do Rego e Ariano Suassuna podem ser lidas conjuntamente em função de um projeto literário nacional que, alicerçado por etapas conjunturais históricas e estéticas distintas, guardam, no entanto, uma característica comum: o resgate da tradição cultural do Nordeste, erigido em símbolo identitário dos valores nacionais.
Situado na vertente do modernismo brasileiro que se convencionou chamar Romance do Nordeste ou, mais precisamente, Regionalismo Nordestino de 30, José Lins do Rego encampa o ideário regionalista de Gilberto Freyre, como forma privilegiada de se pensar a nação brasileira e a identidade nacional[1]. O exame de suas formulações teóricas sobre a questão do regionalismo – disseminadas ao longo de vários ensaios e artigos – resgata os pressupostos básicos que confluem para a representação do espaço regional em seu universo romanesco, embora este, evidentemente, não se confine àqueles.
Em artigo intitulado “Gilberto Freyre” (Rego, 1981), em que comenta o lançamento de mais um livro do sociólogo pernambucano – Região e tradição, publicado em 1941– o romancista estabelece um confronto entre a concepção de regionalismo até então vigente no panorama cultural e político brasileiro e as novas idéias a respeito, apregoadas pelo escritor de Casa grande e senzala (1933). Para o ensaísta de Gordos e magros (1942), o que anteriormente se denominava regionalismo no Brasil poderia ser identificado a duas tendências marcantes na literatura do país: o saudosismo pitoresco antes sentimental que cultural, cuja representação típica seria dada pelo “buriti solitário” do mineiro Afonso Arinos, ou o caipirismo paulista, “que atingia com Monteiro Lobato o seu melhor padrão”. Fora disso (e aqui o autor abre exceção apenas para os contos de Simões Lopes Netto e para a música de Vila Lobos, obras em que vê algo mais do que um mero registro superficial e exótico da cor local), o regionalismo se confundiria com “extravagâncias de linguagem e traje” . Assim, “ no plano das idéias e da literatura, regionalismo era uma limitação, quando não se tornara, no campo político, manifestação perniciosa”(Rego, 1981, p. 259).
A contribuição de Gilberto Freyre, a partir do Congresso Regionalista de Recife, e posteriormente a publicação do trabalho Região e tradição, viria, portanto, atingir estes dois flancos – o político e o literário – funcionado como um verdadeiro marco para um novo entedimeto da questão: “No plano político é o contrário do estadualismo que a República implantara: no plano artístico é uma sondagem na alma do povo, nas fontes de folclore, implantara, no que há de grande e vigoroso na alma popular” (Rego,1981, p. 259).
A adesão teórica de José Lins ao projeto regionalista freyreano – a que denomina regionalismo orgânico – insere, portanto, as concepções do autor de Bangüê dentro da mesma vertente de matriz oligárquica apontado por Rosa Godoy (Silveira, 1984) a propósito do sociólogo de Apipucos. Num e noutro, a explicitação do conceito de região e regionalismo se dá tendo por base o resgate dos valores e das manifestações culturais populares do Nordeste, entendidos com depositários de um poder criador autêntico e genuinamente brasileiro, constituindo-se, assim, como elementos fundamentais na procura das origens, ou seja, da decantada “identidade nacional”. Conseqüentemente, em ambos os autores, a concepção de regionalismo implica, tanto em nível cultural e artístico, como em nível político, uma polarização entre o espaço do Nordeste e o espaço do Centro-Sul do país. No Primeiro caso, essa polarização é formulada em nome da preservação da autenticidade dos valores tradicionais brasileiros (tão vivos ainda no Nordeste), contra os “acentos estrangeiros” e os interesses cosmopolitas, vigentes no Rio e em São Paulo. Conforme afirma Gilberto Freyre, em artigo datado de 1926:

Aviva-se entre os nordestinos a consciência de representarem um Brasil mais brasileiro que o representado pelo Rio, por exemplo: e sob essa consciência, o desejo de procurar animar a sua vida, em expressões novas, modernas, atuais, do espírito tradicionalmente brasileiro que ali de encontra ainda (Freyre, 1976, p. 276).

A consciência da necessidade de se buscar novas formas de expressão para a atualização desse espírito tradicional minimiza as contribuições estéticas e as reivindicações formais empreendidas pelos modernistas de 22. Essas não passariam, como diz José Lins do Rego em “ Espécie de história literária” , de puro artificialismo gramatical, mera reprodução de “todos os tiques e toda a mise-en-scêne com que Marinetti se exibira em palcos italianos, há 15 anos atrás”(Rego, 1942, p. 49). Defendendo, no mesmo artigo, as qualidades do romance nordestino, face às censuras que lhe são dirigidas pelo crítico Sérgio Milliet, José Lins assim se pronuncia a propósito da Semana de Arte Moderna:

Para nós do Recife, essa ‘Semana da [sic] Arte Moderna’ não existiu, simplesmente porque, chegando da Europa, Gilberto Freyre nos advertia da fraqueza e do postiço do movimento. Eu mesmo, num jornal que dirigia com Osório Borba, me pus no lado oposto, não para ficar com Coelho Neto e Laudelino Freire, mas para verificar na agitação modernista uma velharia, um desfrute que o gênio de Oswald de Andrade inventara para divertir os seus ócios de milionário (Rego, 1942, p. 49-50).

A tônica do artigo de José Lins oscila entre a crítica ao movimento artístico de São Paulo – responsável, segundo afirmações de Sérgio Milliet, “por tudo que em literatura se tem feito no Brasil de 1922 para cá” – e a reivindicação do contributo do regionalismo nordestino na renovação do panorama literário brasileiro. A contribuição de Gilberto Freyre, como mentor da jovem intelectualidade, recifense, seria, conforme acentua o autor de Fogo Morto, decisiva para essa renovação que se quer autônoma do eixo Rio-São Paulo. Referindo-se ainda a Sérgio Milliet, afirma:

O critico se esquece que desde 1923 Gilberto Freyre começou a existir, e que desde esse tempo o eixo literário – Recife – apareceu independente do Rio e S. Paulo e até um pouco hostil [...].
O movimento literário que se irradia do Nordeste muito pouco teria que ver com o modernismo do Sul. Nem mesmo em relação a língua (Rego, 1942, p. 50).

Ao acentuar a diferença entre o regionalismo do Nordeste e o modernismo de 22, o que José Lins de Rego pretende basicamente é chamar a atenção para o recalque dos valores da terra e do homem nordestinos, empreendido, segundo se pode deduzir de suas formulações, pelo projeto literário de 22, não obstante esse se arvorar em projeto nacional. Na base da critica que dirige ao ensaísta Sergio Milliet e ao movimento estético que esse representa subjaz implícita a denuncia desse recalque, responsável pelo erro de perspectiva do critico paulista no julgamento do romance nordestino. Para Lins do Rego, o equivoco de Milliet estaria justamente em atribuir a Macunaíma, de Mário de Andrade – que o crítico paulista classifica de o grande romance brasileiro – uma força humana e universal, capaz de romper fronteiras. Contrapondo-as à visão de Milliet, o romancista paraibano afirma que, se não fosse o talento poético do autor, Macunaíma não passaria de “uma coisa morta, folha seca, mais um fichário de erudição folclórica do que um romance”(Rego, 1942 p. 51). Sérgio Milliet, ao confundir a expressão da realidade regional com estreiteza de horizontes e monotonia de enredo, estaria repelindo, na literatura do Nordeste, o que faz a grandeza de toda literatura: “o vigor [...] a saúde que vem da terra, das entranhas da terra, da alma do povo.” E conclui o autor: “O Sr. Milliet quer heróis requintados, sujeitos com prosa de deck de transatlânticos, romance que não seja da terra e do povo do Brasil” (Rego, 1942, p.52-53).
Se literariamente o regionalismo se erigia em baluarte do espaço do Nordeste, concebido como repositório dos valores nacionais, em termos políticos o argumento apresentado para a defesa desses valores não é diferente. Pressupõe a mesma critica ao espaço Sudeste do país, cuja hegemonia, assegurada pela organização estadualista da República Velha, assinalava, em contrapartida, o relativo atraso em que se viam confinadas as regiões Norte e Nordeste, desfavorecidas politicamente pelo tratamento preferencial concedido aos Estados do Centro-Sul, notadamente São Paulo. Outorgando uma certa autonomia de poder aos Estados, o regime da República Velha terminava, na concepção de Gilberto Freyre, apoiada por Lins do Rego, por favorecer os Estados sulinos, levando ao esquecimento das regiões e de seus problemas específicos. Diante de tal situação, a União, afirma Freyre, tornar-se-ia duplamente impotente: para conter os “desmandados para-imperiais [sic] dos Estados grandes e ricos”, para “policiar as turbulências balcânicas de alguns dos pequenos em população e que deveriam ainda ser Territórios e não, prematuramente, Estados” (Freyre, 1976, p. 55).
Nessas condições, o estadualismo afigurava-se como uma ameaça à unidade da nação. Ameaça que deveria ser evitada pela invocação a uma administração em bases regionais, como meio de preservar a unidade nacional (Carvalho, 1981). Assim, o regionalismo proposto por Gilberto Freyre assentava suas bases na integração dos diferentes espaços regionais, revelando-se como elemento agenciador de duas noções básicas: as explicações psicológicas acerca do caráter brasileiro e a noção de unidade nacional, responsáveis, para usar as palavras de Carlos Guilherme Mota, pela cristalização de “ uma ideologia que, até hoje, em maior ou menor medida, continua informado a noção de Cultura Brasileira” (Mota, 1978, p. 57). Como exemplo das observações de Carlos Guilherme Mota, examine-se a seguinte afirmação de José Lins:

Nesse sentido o regionalismo do Congresso de Recife merecia que se propagasse por todo o Brasil porque é essencialmente revelador e vitalizador do caráter brasileiro e da personalidade humana. Com um regionalismo desses é que poderemos fortalecer mais ainda a unidade brasileira (Rego, 1942, p. 131).

O que se defendia, portanto, no ideário regionalista de Gilberto Freyre e José Lins, não era o separatismo entre as regiões mas sim uma representação do Brasil que o configurava como:

[...] a grande unidade que nem meio século de estadualismo pudera corromper. Região contra estadualismo, personalidade contra uniformidade, respeito às tendências mais íntimas do povo contra a tirania de se deformar o que o povo possui de seu, de sua alma popular e não como um simples recreio de curiosos de exotismos (Rego, 1942, p. 132).

Essa crítica ao regime político da República Velha não implica, no entanto, uma contestação aos valores oligárquicos, pois, como afirma Luciano Martins, em seu livro A Revolução de 1930 e seu significado político:


[...] o que está em crise não é a dominação oligárquica, mas a confederação oligárquica, através da crise de uma dada forma de Estado que era sua expressão política em plano nacional – e de uma dada forma de Estado com a qual praticamente se confundia o sistema político. O que se contesta, em síntese, é a oligarquia enquanto elite dirigente e não enquanto classe dominante (apud, Silveira, 1984, p. 28).

As idéias de José Lins acerca do estadualismo são retomadas e reiteradas, aproximadamente nos mesmos termos, em “O regionalismo de Gilberto Freyre” (Rego, s/d. p. 39), onde o romancista volta a examinar a questão do regionalismo sob o duplo ângulo já apresentado em Gordos e magros: o literário e o político, encontrando aí os mesmos limites apontados anteriormente”. Na vertente literária, o autor acrescenta, agora, ao lado da tendência exótica e sentimental, representada por Afonso Arinos e por Catulo da Paixão Cearense, uma outra tendência oposta à primeira, por se caracterizar como um esforço de penetração analítica nos problemas regionais. Esta se configuraria com Os sertões, de Euclides da Cunha, que, não obstante algumas restrições apresentadas por José Lins[2], surgiria, muito mais do que a obra de Alencar, como “o nosso primeiro grande livro regionalista”(Rego, s/d p. 39).
O regionalismo de Gilberto Freyre – continua o romancista – aproveitando o que havia de mais positivo em Afonso Arinos e Euclides da Cunha, combinaria a força poética de um e a penetração analítica de outro, no intuito de ressaltar os valores mais expressivos da terra e, conseqüentemente, do homem brasileiro. Ao mesmo tempo em que, no plano político, ao insurgir-se contra o regime federativo, se apresentaria como “uma replica ao estadualismo que vinha corrompendo a nossa unidade.” Pois, acrescenta Lins do Rego, referindo-se ao sociólogo pernambucano, “ele ama o seu Pernambuco para mais ainda amar o seu Brasil”(Rego,s/d. p. 41).
Assim, no contexto de crise decorrente das transformações capitalistas de que derivou a ascensão da burguesia e , conseqüentemente, a implantação de novas formas de organização social, a percepção do processo de perda da oligarquia rural engendra a recuperação dos valores regionais. Estes passam a ser identificados com a própria busca do “caráter brasileiro” e do passado nacional. Como diz Carlos Guilherme Mota, referindo-se a Gilberto Freyre:

A busca proustiana do passado ‘nacional’ não pode dispensar uma categoria abstrata e escorregadia como a de ‘caráter brasileiro’ [...] Obras como Casa Grande e Senzala, produzida por um filho da República Velha, indicam os esforços de compreensão da realidade brasileira realizada por uma elite aristocratizante que vinha perdendo poder. À pedra de força social e política corresponde uma revisão, à busca do tempo perdido. Uma volta às raízes (Mota, 1978, p. 58).
Em José Lins, esta busca fundamenta – no que diz respeito à representação do espaço regional – a oposição básica através da qual sua obra ficcional é concebida: a oposição entre o espaço rural do engenho e o espaço da cidade, entre os valores do mundo patriarcal açucareiro e os valores da civilização urbana e burguesa. Oposição que, segundo já afirmara M. Cavalcanti Proença, a propósito de Moleque Ricardo, pressupõe “uma declaração tácita de superioridade do regime do campo sobre o regime da cidade” (In: Rego, 1978, p. VI).
Como em José Lins do Rego, em Ariano Suassuna a representação do espaço regional também pressupõe as formulações sobre a arte e a cultura populares e sua integração à literatura eruditas, vinculadas à noção de cultura brasileira e à questão do nacionalismo. Assim, para o autor do romance d’ A Pedra do Reino e o príncipe do sangue do vai-e-volta (1971), a exemplo do que já fora observado a respeito de José Lins, o interesse primordial pela obra popular e pelo povo parte do pressuposto romântico de que a cultura popular é a fonte pura, as raízes definidoras de uma autêntica cultura nacional da qual a cultura erudita se alienou e a qual deve regressar em busca de sua identidade nacional. Com base nesses pressupostos, ambos os autores acreditam, conforme já assinalou Sebastião Uchoa Leite a propósito de Ariano, “que é na própria arte do povo, ainda como expressão bruta e inculta que se encontra o potencial para uma grande arte nacional” (Leite, 1965, p. 287 – grifo do autor). Nesse sentido, tanto Lins do Rego como Suassuna se situam como adeptos de um conceito tradicional de cultura popular, segundo é definido por Sebastião Uchoa Leite: “Arte e literatura feita pelo povo e para o povo, mas nem sempre sobre o povo” (Leite: 1965, p. 274 – grifos do autor).
Em Ariano, talvez mais do que em qualquer outro ficcionista brasileiro, verifica-se a necessidade – obsessivamente reiterada ao longo de vários artigos e ensaios – de explicitar teoricamente essas questões. Elas constituem o cerne não só de seu projeto ficcional, como também do próprio movimento estético inspirado e liderado por ele, o Movimento Armorial.
Em artigo intitulado “0 que é cultura popular”, onde examina criticamente as várias acepções atribuídas ao termo cultura popular no Brasil, o autor tenta precisar aquele que parece o sentido mais próprio e justo do termo, ou seja, o que para ele melhor definiria a expressão. Neste sentido, afirma o autor, o conceito de cultura popular “[...] alude à cultura do povo mais pobre, principalmente os analfabetos” (Suassuna, 1963). Distinguindo, no mesmo artigo, a arte popular (“viva, atuante e dinâmica”) do folclore (“camada estratificada”), Ariano a precisa nos seguintes termos:

A arte popular é realizada pelo povo, para atender a sua necessidade de viver, incluindo nessa necessidade os utensílios da vida cotidiana (cerâmica, pintura, escultura e arquitetura populares) e as diversões (música, poesia, dança, e teatro populares). A arte popular, aqui é a arte do povo , do ‘quarto estado’. É de notar que às vezes essa arte alcança qualidade: isso ocorre principalmente quando o ‘quarto estado’ não se encontra dissociado do resto do povo, mas praticamente exprime uma unidade nacional (Suassuna, 1963).

A ideologia da unidade nacional permeia, pois, as várias formulações do autor sobre as manifestações culturais populares. Conseqüentemente, a cultura popular do Nordeste constitui-se como expressão do pensamento nacional, já que é aqui especificamente que se encontram, conforme escreve em outro texto, as duas linhagens responsáveis pela raiz da nossa cultura: “a linhagem barroca (de origem ibérica, mas recriada aqui de um modo popular e brasileiro) a própria linhagem popular, tão poderosa nas manifestações literárias e artísticas do Nordeste” (Suassuna,1969).
Informado por esses pressupostos, o autor visa – e este é o objetivo do Movimento Armorial – à criação de uma arte e de uma literatura eruditas nacionais, a partir do manancial popular da cultura Nordestina, ponto de confluência de elementos europeus, negros e indígenas. A busca desse manancial popular fundamenta toda a produção ficcional do autor. Comparece tanto nas suas primeiras peças e entremezes, quanto nos dois romances incluídos na sua ainda incompleta trilogia – A maravilhosa desaventura de Quaderna, o decifrador, e a demanda novelosa do reino do sertão. Ela é teoricamente explicitada nos textos sobre os Movimento Armorial, onde Suassuna tenta definir a escolha do termo armorial, procurando introduzi-lo “na paisagem brasileira” e na “arte nordestina”(Santos, 1981 , p. 173). É assim que, em 1973, ao apresentar pela primeira vez uma definição geral, visando a abarcar as várias formas de manifestações artísticas que recobrem o Movimento, Ariano a formula desta maneira:

A arte Armorial Brasileira é aquela que tem como traço comum principal a ligação com o espírito mágico dos “folhetos” do Romanceiro Popular do Nordeste (Literatura de Cordel), com a Música de viola, rebeca ou pífano que acompanha seus “cantadores”, e com a xilogravura que ilustra suas capas, assim como com o espírito e a forma das Artes e espetáculos populares com esse mesmo Romanceiro relacionados (Suassuna, 1973).

O termo armorial e sua relação com a heráldica serve, portanto, para a explicitação das várias formas de representações simbólicas da cultura popular, conforme já foi dito por um estudioso (Santos, 1981, p. 173) da obra de Suassuna, com base nas seguintes palavras do próprio autor:

A unidade nacional brasileira vem do Povo, e a Heráldica popular está presente, nele, desde os ferros de marcar bois e os autos dos Guerreiros do Sertão, até as bandeiras das Cavalhadas e as cores azuis e vermelhas dos Pastoris da Zona da Mata. Desde os estandartes de Maracatus e Caboclinhos, até as Escolas de Samba, as camisas e as bandeiras dos Clubes de futebol do Recife ou Rio (Suassuna, 1974, p. 11).

É, pois, através da conceituação do Movimento e da explicitação do significado do próprio termo armorial que Ariano formaliza uma interpretação do Brasil e da cultura brasileira pelo ângulo regional. A sua concepção de regionalismo, no entanto, não se quer confinada aos limites do regionalismo de 30. Para que melhor se precise a postura suassuniana face ao regionalismo de 30, faz-se necessário um retorno aos textos anteriores do autor, onde esta questão é tematizada.
Em artigo intitulado “Xilogravura popular do Nordeste” – em que retoma o tema de dois artigos seus publicados em 1952 sobre as duas linhagens acima mencionadas – Suassuna tenta definir os contornos desse movimento artístico então emergente no Nordeste (o (Movimento Armorial) em relação às concepções estéticas do Modernismo e de sua vertente regionalista de 30. Afirma o autor, referindo-se às suas reflexões de 52, que recaíram, na época, especificamente sobre a escultura de origem barroca e a xilogravura popular:

Era o tempo em que eu sentia que nossa geração tinha alguma coisa a dizer e que, para dizê-la, não nos bastavam as idéias e os caminhos abertos nem pelos Modernistas, nem pelos Regionalistas. Éramos, todos, como somos, devedores a uns e a outros, principalmente, ao Regionalismo e a Escola do Recife. Mas havia também em ambos os casos algo que nos separava. Nos Modernistas, o que não me agradava era a origem cosmopolita e a artificial preocupação vanguardeira. Os Regionalistas, sendo também tradicionalistas, ajudavam-nos nessa oposição. Mas tinha uma certa tendência neo-naturalista que foi a linha seguida por todos os romancistas do Regionalismo (Suassuna, 1969).


Deste modo, concorde com a proposta regionalista de 30, no que diz respeito à defesa da tradição cultural do Nordeste e à valorização das manifestações populares, enquanto manancial a ser recriado e incorporado à literatura erudita, concorde ainda com essa proposta na caracterização da região e dos valores regionais vinculados à noção de unidade nacional, Ariano dela se pretende afastado quanto ao ângulo de abordagem.

Eles - os romancistas de 30 – são naturalistas. Eu não gosto de literatura psicológica, intimista neo-naturalista. Eu prefiro a tragédia e a comedia que são formas puras ao drama, que é a parte psicológica, mais burguesa mais intimista. Eu prefiro os extremos: as formas mais aristocráticas ou as mais populares (Suassuna,1971).

Ao frisar essa diferença de perspectiva entre o romance neo-naturalista de 30 e a obra ficcional suassuniana, Silviano Santiago assim se expressa:

Suas peças, em particular, propõem pensar o brasileiro dentro do ibérico-sertanejo. O texto folclórico, a literatura de cordel que as alimenta trai a infuência da colonização ibérica na região equatorial. Unem-se assim no produto literário o desejo de inscreve-lo em determinado e específico ponto do Nordeste do Brasil (Paraíba , para ser preciso), e ao mesmo tempo a necessidade de apresentar este ponto como um microcosmo da realidade cultural luso-brasileira, a realidade cultural da civilização latina. Aliás, seria essa uma das diferenças básicas entre a obra de Suassuna e a dos chamados romancistas do Nordeste, pois em Suassuna não existe a intenção de fazer um levantamento artístico-siciológico da região nordestina, dentro dos moldes da escola naturalista, mas antes busca ele uma recriação poética do Nordeste através dos textos do romanceiro popula, graças aos folhetos da literatura de cordel (Santiago, 1974, XIV).

Regionalismo versus cosmopolitismo, apego à tradição versus preocupação vanguardeira, recriação poética do mundo versus tendência neo-naturalista, formas aristocráticas e populares versus formas intimistas e “burguesas” surgem, portanto, como as principais dicotomias através das quais o autor formula a sua concepção de arte e literaturas brasileiras. O elogio das formas aristocráticas e populares, erigidas sob a marca da unificação cultural e sob o ângulo do poético, pressupõe uma exaltação dos valores artesanais do mundo rural e da cultura popular, identificados miticamente como a expressão “mais peculiar e singular” da cultura brasileira, em oposição aos valores industriais e burgueses dos centros urbanos hegemônicos. Esta bipolarização entre o rural e o urbano revela a contrapartida ideológica que subjaz à representação do espaço regional em Suassuna. Privilegiando o espaço rural nordestino e dentro dele, o sertão, Ariano engendra, de uma maneira simétrica inversa à formulada por José Lins, a dicotomia entre os dois espaços rurais do Nordeste: o litorâneo-açucareiro, locus dos senhores de engenho, e o pastoril/algodoeiro, locus dos fazendeiros sertanejos.O espaço regional recortado por Ariano Suassuna é, portanto, o Nordeste pecuário-algodoeiro, a “civilização do couro”, o “outro Nordeste” de que trata Djacir Menezes (1937).
O surgimento desse “outro Nordeste” como região hegemônica a cujos interesses teve que se submeter a oligarquia açucareira, com as transformações que se operavam no século XIX e primeiras décadas deste século na hierarquia do poder entre as classes dominantes do Nordeste, é analisado por Francisco de Oliveira (1981) em Elegia para uma re(li)gião. O autor atribui a perda da hegemonia do baronato açucareiro, ao longo de todo o século XIX e primeiras décadas deste século, ao surgimento da ‘região’ do café no Sudeste do Brasil e à competição e controle da produção do açúcar no Caribe. Ao mesmo tempo, submetido aos interesses do capital comercial e financeiro inglês e norte-americano, surgia um “outro Nordeste” o algodoeiro-pecuário, que vai se integrar no novo esquema de poder oligárquico denominado “café-com-leite” (São Paulo e Minas), formado pelos “coronéis” do complexo algodoeiro-pecuário e pelos “barões” do café da região Sudeste. Essa subordinação do “velho Nordeste”, da opulência dos barões do açúcar, ao rústico e sóbrio “novo” Nordeste dos latifundiários do sertão algodoeiro e pecuário permaneceu inalterada até os recentes anos cinqüenta, quando “A conversão da região do café em ‘região’ da indústria começa a redefinir a própria divisão regional do trabalho em todo conjunto nacional” (Oliveira: 1981:37).
É esse contexto dos anos cinqüenta, marcado pela política desenvolvimentista do governo de Juscelino Kubitschek, que juntamente com outras etapas conjunturais responsáveis pelo processo de modernização do país, informa o Romance A Pedra do Reino, de Ariano Suassuna. Ao lado da Revolução de 1930, marco histórico da instauração de uma ordem burguesa na sociedade brasileira, e do regime militar de 1964, durante o qual se criam as condições políticas para implantação definitiva do capitalismo no Brasil, consubstanciando-se no chamado “milagre brasileiro”, o “arranque desenvolvimentista” dos anos cinqüenta funciona como um dos interlocutores do romance de Suassuna (Farias, 1996, p. 171-173).
Vale lembrar que A Pedra do Reino foi produzida durante o período de 1958 a 1970. O contexto em que se insere a produção do romance recobre, portanto, além da conjuntura histórica de trinta, explicitamente tematizada na ordem textual, as outras duas etapas conjunturais acima delineadas. Embora deslocadas do nível manifesto da cena de representação de romance, essas etapas imprimem aí sua marca, funcionando como interlocutores latentes em contraposição aos quais o romance busca resgatar uma ordem perdida, um “mundo fidalgo” e cavaleiresco anterior à industrialização (Farias, 1996, p.173).
Os pressupostos regionalistas que alicerçam a concepção de Nordeste e de Brasil em José Lins do Rego e Ariano Suassuna confluem para a revalidação simbólica das respectivas zonas rurais que elegem como depositárias dos legítimos valores brasileiros. O privilegio concedido ao universo agrário do Nordeste, em oposição ao mundo urbano do Centro-Sul do país, ratifica a defesa da ordem patriarcal e oligárquica da República Velha, contrapondo-a à nova ordem burguesa consolidada pela Revolução de 30. No caso especifico do romance de Ariano, a contraposição se estende como se viu – às duas etapas da conjuntura política brasileira – o contexto desenvolvimentista do governo de Juscelino Kubistschek e do regime militar de 64, em cuja vigência se desenhou o quadro ideológico favorável ao incremento da industrialização capitalista no âmbito nacional.
Consoantes na busca retrospectiva das velhas estruturas ancoradas no passado colonial e na recuperação mítica da tradição cultural nordestina, as idéias regionalistas de José Lins e de Ariano Suassuna apresentam-se como duas faces não antagônicas de uma mesma matriz cultural de base oligárquica (representada aqui pelo ideário regionalista luso-tropical de Gilberto Freire), cujas variações, antes de se constituir perspectivas excludentes, oferecem-se como contrapartidas estético-ideológicas daquilo que Francisco de Oliveira (1981, p. 52) denomina a “dialética da oposição ‘Nordeste’ algodoeiro-pecuário versus ‘Nordeste’ açucareiro”. Tal dialética inscreve a produção literária de ambos os autores no panorama da literatura regionalista do Nordeste dentro de uma vertente literária que se poderia chamar de conservadora.

(Subcapítulo da tese de Doutorado defendida originalmente na PUC/RJ em 1988 , com o título Messianismo e cangaço na ficção nordestina: análise dos romances Pedra Bonita e cangaceiros, de José Lins do Rego, e A Pedra do Reino, de Ariano Suassuna. Publicado originalmente In: Joachim, Sébastien et Montandon, Alain, (orgs) Literatura migração e Hospitalidade. Recife: UFPE, 2003. pp. 381 - 395.


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___________. A visão mágica do Nordeste de Ariano Suassuna (o do Auto da Compadecida) Correio da Manhã. Rio de Janeiro; 08/10/1971.

___________. Romance d’ A Pedra do Reino eo príncipe do sangue do vai-e-volta;
romance armorial-popular brasileiro. 4 ed. Rio de Janeiro: J Olympio, 1976 .
[1] Um estudo detalhado do ideário regionalista de Gilberto Freyre na década de 20 e suas articulações com a literatura regionalista, na qual se destaca José Lins do Rego, encontra-se em D'Andrea 1992).
[2] Em dois artigos intitulados: “Eu não vi o sertanejo de Euclides “, e “Os jangadeiros”, Lins do Rego tenta reabilitar respectivamente a imagem do sertanejo e a do homem litorâneo apresentada em Os sertões, por Euclides da Cunha, Cf. Rego, José Lins do. Gordos e magros. p. 217-219 e p. 221-223.
Author: Sônia Ramalho de Farias
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Representação do Imaginário Rural do Sertão no
Processo Natrrativo d'Pedra do Reino A legitimaçãodo popular: um contraponto com José Lins do Rego.

A exemplo de Pedra Bonita e Cangaceiros, o enfoque do popular n’ Pedra do Reino (1971) [1] contamina o próprio processo de composição da obra. Nota-se aqui a mesma preocupação de integrar a matéria narrada ao modo narrativo, ajustando a temática ao aspecto forma do texto. Isto significa que o romance de Ariano também não delega a uma voz de fora, distanciada da experiência vivida pelos personagens, a tarefa de organizar e conduzir a tessitura romanesca. Ao invés, na esteira dos dois textos mencionados, o tecido ficcional n’ A pedra do Reino é elaborado através de uma ótica interna que se quer bem próxima da realidade sobre a qual incide: o meio rural do sertão. Ao encampar essa realidade, a narrativa encampa, simultaneamente, como já o fizeram os romances do "ciclo do cangaço e do misticismo", de José Lins, o legado da tradição cultural popular nela vigente. Num e noutro romancista, o sertão e as formas de expressão estética específicas ao homem sertanejo constituem o substrato que alimenta a fabulação ficcional.
Essa postura comum aos dois autores, comprometida, pelo menos em propósito consciente e não sem ambigüidade, com os valores socioculturais do oprimido, alinha os seus discursos dentro uma vertente literária que se caracteriza basicamente pelo desejo de incorporar, sob um ângulo regionalista, o nacional-popular à ficção erudita. É pela mediação da produção poética popular nordestina, no sentido amplo do termo, que os romances dos dois escritores paraibanos se acercam dos fenômenos do messianismo e do cangaço.
Há, no entanto, duas diferenças fundamentais quanto à técnica utilizada por cada um dos romancistas para se acercar do imaginário do sertão. A primeira diz respeito à representação do narrador. A segunda, à maneira de contar a estória.
Nos romances de Lins do Rego, o narrador anônimo, em terceira pessoa, não se distingue, enquanto voz privilegiada, das outras vozes que compõem o enredo. Ao contrário, confundindo-se com a fala e o fluxo de consciência dos personagens, o narrador finge ausentar-se da cena dramatizada para deixar que os textos falem através da pluralidade de vozes que os constituem. Pondo-se na escuta da fala dos diversos atores, cabe ao narrador apenas a tarefa de ordenar e veicular o caudal de informações advindas dos diferentes segmentos sociais em confronto. Os eventos e ações fluem naturalmente desse brotar polifônico, sem a interferência direta do sujeito da enunciação. Este em nenhum momento se faz explicitamente representar no processo enunciativo. Constitui-se, de outra forma, em narrador "invisível", só perceptível nas entrelinhas dos discursos que reagencia, pelos acentos avaliatórios com que vai pontilhando sutilmente os comentários e as reflexões dos personagens. Ao mesmo tempo, os romances prescindem de qualquer implicação ou referência explícita ao ato da escritura. O discurso se constrói sem que seja necessário falar dele próprio. O processo narrativo é posto em prática, evidencia-se na sua materialidade lingüística, não sendo jamais explicitado ou questionado teoricamente em nível textual.
Assumindo um procedimento diverso do apontado acima. A Pedra do Reino traz de volta a presença do sujeito da enunciação, representado agora ostensivamente na cena romanesca. A narração é conduzida por um narrador-personagem em primeira pessoa, Pedro Diniz Ferreira-Quaderna, cuja voz alça-se em primeiríssimo plano na polifonia de vozes que também instrumentam o orquestrar narrativo. Este "eu" central, que participa da dupla condição de sujeito e objeto do discurso, encontra-se, ao contrário do narrador "ausente" de Pedra Bonita e Cangaceiros, extremamente envolvido nas situações narradas. É esse envolvimento que determina a redação do romance, bem como os mecanismos utilizados para a sua explicitação. A narrativa põe, assim, propositalmente em evidência não só a figura do narrador, quanto a questão da produção textual. O contar e o explicar se entrecruzam, se dão em simultaneidade. O texto desdobra-se sobre si mesmo, seduzido pela obsessão de auto-explicar-se, auto-referenciar-se. O ato da escritura converte-se num verdadeiro fetiche: o fetiche de seu narrador, que se coloca ao mesmo tempo como construtor/condutor do enredo e mestre da leitura.

O enigma romanesco: a construção da charada-epopéica

Ao longo das seiscentas e vinte e cinco páginas que enfeixam o romance, Quaderna transita livremente de um determinado registro, o da criação literária, para outro, o da crítica. Assume, portanto, uma dupla e simultânea postura: a do narrador que tece o labirinto do "Romance-enigmático de crime e sangue" [2] dele participando como personagem, e a do intérprete que visa, através de constantes intervenções e digressões teóricas, a explicar para os demais personagens e para o leitor as formas de expressão ligadas ao processo artístico. Há no romance encaixes textuais que funcionam como verdadeiros tratados de estética e retórica. Neles Quaderna apresenta o seu projeto literário [3] a obra que pretende elaborar com o material colhido dos autos processuais nos depoimentos prestados ao corregedor. Passa constantemente em revista a questão dos gêneros, espécies e estilos literários, buscando aqueles que mais se adequem à estória que planeja construir. Aponta qual o centro da narrativa, seus "nós" e enigmas. Discorre sobre a técnica a ser adotada na construção de intriga. Cita seus modelos preferidos, os autores e obras que mais o influenciaram e que funcionam como paradigma para o seu próprio texto. Coteja os diversos livros citados. Destaca as melhores passagens de cada um deles, o enfoque que lhes é conferido, suas qualidades e/ou falhas estruturais. Discute com seus dois mestres, o advogado Clemente Hará de Ravasco Anvérsio e o promotor Samuel Wandernes, problemas de cunho político, filosófico e literário, acatando ou rejeitando parcialmente as concepções e sugestões que estes lhe oferecem. Conduzindo-se como guia da leitura, procura, enfim, por meio de todos esses procedimentos, deslindar para o leitor o sentido do que opacamente se está escrevendo no tecido da linguagem.
Os comentários críticos de Quaderna não nos devem, no entanto, enganar. Se por um lado, eles se oferecem como uma micro-leitura interna do texto, se visam a funcionar como um "filtro de transparência" para a polissemia da linguagem literária, por um lado, contribuem para aumentar o hermetismo do enigma narrativo, acumulando o texto com camadas e mais camadas interpretativas. De construtor de enigmas e charadista a diascevasta [4], conforme se denomina em várias passagens do romance, o narrador vai forjando, para usar suas próprias expressões, uma verdadeira trança, uma intricada teia, um insolúvel enredo."(APR, p. 29 – grifo do autor). Não é à toa que dentre suas leituras prediletas se encontrem vários almanaques e outras publicações congêneres, responsáveis pela sua iniciação na "Nobre Arte" da charada e do logogrifo: o Lunário perpétuo, o Almanaque de Campina Grande, fundado pelo fotógrafo Euclides Villar, e o Almanaque do Cariri, publicado por seu pai, de quem herda as habilidades de charadista, astrólogo e poeta. Não é também por acaso que seu livro de cabeceira, um dos mais citados no romance, seja o Almanaque charadístico e literário luso brasileiro, do qual participa como colaborador, e cujo suplemento anual recebe o significativo título de "Édipo" [5].
Aficionado leitor e redator de almanaques [6], Quaderna intenta compor uma obra em logogrifo, uma "charada-epopéica" que ultrapasse de longe o enigma proposto a Édipo pela esfinge: "[...] modéstia à parte, minha charada epopéica, o logogrifo em versos que vai iniciar minha Epopéia, é muito superior ao enigma-mor dos gregos, povo de Homero!" (AP, p. 364). Como se não bastasse contar a estória, engendrar-lhe os enigmas, ele também se propõe a decifrá-los, desafiando o leitor a ultrapassá-lo nessa dupla tarefa:

[...] eu, Dom Pedro Quaderna, (Quaderna, O Astrólogo, Quaderna, O Decifrador [...]; eu [...] desafio qualquer irônico, estrangeiro ou Brasileiro, primeiro a narrar uma história de amor mais sangrenta, terrível, cruel e delirante do que a minha), e depois, a decifrar, antes que eu o faça, o centro enigmático de crime e sangue da minha história, isto é, a degola do meu padrinho e a ‘desaparição profética’ de seu filho Sinésio, o Alumioso, esperança e bandeira do Reino Sertanejo (APR, p. 30).

O enigma de Bentinho e o enigma de Quaderna

A questão do enigma e de sua decifração já comparece como um dado capital na elaboração da intriga em Pedra Bonita e Cangaceiros. É de forma cifrada que a história da pedra se dá a perceber ao protagonista Betinho. Mas nesses romances o enigma vai sendo sub-repticiamente engendrado pelos discursos evasivos e reticentes dos personagens. Não constitui, por assim dizer, uma preocupação do narrador. Este não assume pessoalmente a autoria do enigma, nem antecipa nenhuma colocação no intuito de elucidá-lo. Tampouco se propõe a refletir sobre ele no nível da produção textual. Simplesmente incorpora-o à técnica narrativa. São os personagens que se encarregam de criar o suspense, o clima de mistério, marcando com um "grande segredo" os acontecimentos ligados ao reduto messiânico. São eles também que aguçam a curiosidade e o medo do protagonista e que o lançam na aflitiva e tortuosa demanda para desvendar a história tabu. Concebido e desfeito pelos personagens, o enigma não adquire nas narrativas de José Lins, a dimensão e a complexidade que lhe são dadas no texto de Ariano. Aqui o fazer literário se converte todo ele numa charada. O processo de produção é proposto de forma intencional pelo narrador como um processo enigmático. Assim, a tessitura do enredo e as configurações internas da leitura, que nos dois romances de José Lins ficam, sobretudo, a cargo dos personagens, concentram-se, n’ A Pedra do Reino, principalmente na figura do narrador.
É claro que Quaderna não é o único responsável pela narração, nem o único comentarista interno do texto. É sua intenção compor uma obra prima que represente a súmula de toda literatura brasileira [7]. Para isso ele incorpora à sua narrativa uma multiplicidade de textos de autores, gêneros, estilos e épocas diferentes. Faculta a várias vozes o papel de narrar e interpretar os eventos fictícios. No entanto, embora abra espaço para que aflorem na sua narrativa uma variedade de vozes, textos e perspectivas contrapostas, embora delegue aos demais personagens a tarefa de auxiliá-lo no processo narrativo, embora permita ainda que compartilhem com ele do ato da leitura, todos os acontecimentos narrados passam diretamente pelo seu crivo. São a posteriori (re)vistos, filtrados, comentados e analisados sobre sua ótica. Quaderna interfere constantemente no discurso dos outros figurantes. Concorda ou discorda sem nenhuma neutralidade das opiniões emitidas. Suplementa, com comentários feitos à margem, os textos de que se apropria. Manipula, enfim, ao sabor de seus interesses, o vasto material disposto no livro. É ele que detém sempre a última palavra, exercendo, portanto, o controle absoluto da narrativa. Nesse sentido, os vários enfoques que determinam a composição do romance e que servem de complemento ou de contraponto à perspectiva do "eu" central se acham indissoluvelmente atrelados à visão do sujeito da enunciação. A presença deste medeia de forma ostensiva os fatos enunciados, interpondo-se entre eles, os personagens e o leitor.
O privilégio concedido ao foco narrativo em primeira pessoa n’ A pedra do Reino, quando posto em confronto com o foco narrativo em terceira pessoa nos dois romances de José Lins, torna possível detectar no texto de Suassuna uma radical diferença no arranjo do material narrado. As freqüentes ingerências teóricas do narrador, as suas incursões por uma variada gama de textos que subsidiam o relato, os diversos mecanismos retóricos utilizados para fazer avançar ou retardar o andamento da intriga tornam a trama extremamente complexa, exigindo do leitor uma acuidade redobrada. Não se trata aqui apenas de acompanhar a estória, de perseguir mais ou menos atentamente o modo como é construída. Trata-se, sobretudo, de deslindar os ardis, de desfazer os "nós" da espessa malha tecida com astúcia por esse narrador que disputa com o leitor e com os demais personagens com quem dialoga o papel de intérprete. É especificamente a esse intérprete maior que se deve prestar atenção, pois é através de suas manobras que se tem acesso à pluralidade de estórias, aos diferentes registros discursivos, à diversidade de pontos de vista que se interpenetram na meada textual.
No plano fabular dois motivos centrais desencadeiam o enigma e a "demanda novelosa" em que o narrador se lança para elucidá-los: a morte misteriosa do seu tio/padrinho, Dom Sebastião Garcia-Barretto, em 1930, na vila de Taperoá, e a subseqüente "desaparição profética" do filho deste, Sinésio, e seu posterior reaparecimento em 1935. Esses fatos constituem as "causas imediatas" da prisão de Quaderna e se acham estreitamente ligadas a outras, as "causas remotas", referentes às ocorrências do fenômeno messiânico da Pedra do Reino em 1835-1838 [8].
A narrativa tem início em 1938, com o narrador já preso na cadeia da vila de Taperoá, onde aguarda as decisões da justiça rememorando os acontecimentos que o levaram até lá e que são os mesmos que interagem na estrutura romanesca. Enquanto espera o desfecho definitivo do julgamento redige um ‘Memorial’ à nação brasileira, visando a comprovar sua inocência no inquérito em que se encontra implicado: "[...] preciso explicar [...] que meu ‘romance é, mais, um Memorial que dirijo à Nação Brasileira, à guisa de defesa e apelo, no terrível processo em que me vejo envolvido (APR, p. 5). O romance/memorial6 encerra na verdade um tríplice apelo: à nação brasileira, à Academia Brasileira de Letras, na qual o narrador sonha ingressar, e ao Supremo Tribunal. E, mais do que isto, é um apelo ao leitor, "um pedido de clemência, uma espécie de confissão geral, uma apelação - um apelo ao coração magnânimo de Vossas Excelência" (APR, p. 6).
A ênfase dada à função conativa da linguagem tenta assegurar a recepção da obra contando como a cumplicidade do leitor virtual. Este é convidado a participar da estória, convidado a julgar benevolentemente aquele que a narra em tom confessional. Mas antes que possa fazê-lo, com benevolência ou não, antes mesmo que possa se inteirar da intriga que deflagrou o duplo processo em que se acha envolvido o narrador - o processo judicial e o processo romanesco - se vê usurpado da função que por direito lhe cabe e para a qual foi chamado pelo apelo insistente do narrador. O próprio Quaderna se encarrega desse ato de usurpação, na medida em que, antecipando-se ao leitor, faz acompanhar a escrita do texto de sua glosa, de sua interpretação.

A mediação do cordel: o substrato poético e cultural do Nordeste

Para a elaboração e explicitação do romance, Quaderna utiliza-se do mesmo substrato cultural que informa a dramaturgia de Suassuna: a literatura de cordel, as manifestações do folclore nordestino e a tradição do romanceiro medieval, às quais se juntam agora as formas épicas das novelas de cavalaria. Esse vasto material, que alicerça em menor proporção a estrutura romanesca de Pedra Bonita e Cangaceiros, interage profundamente nos vários níveis constitutivos d’A Pedra do Reino, convertendo-se no fator determinante da construção do romance. Incorporado à experiência de vida do narrador-personagem, ele funciona, de forma bem mais intensa e abrangente do que nos textos de José Lins, como elemento mediador através do qual se põem em evidência tanto a temática do messianismo e do cangaço, quanto o processo narrativo.
Toda a aprendizagem literária de Quaderna se nutre em primeiro plano do imaginário poético do Nordeste, constituindo este parte integrante do seu núcleo familiar. Na fazenda Onça Malhada, propriedade de seu tio e padrinho, Dom Sebastião Garcia-Barretto, onde passa a infância e a mocidade, é introduzido desde cedo no "Reino da Poesia" [9]. Por intermédio de sua tia Filipa e de uma freqüentadora assídua da fazenda, Sá Maria Galdina, a Velha do Badalo, toma conhecimento de antigos "folhetos" e "romances", ligados à tradição do romanceiro medieval e ao romanceiro nordestino. Freqüenta ainda, na companhia de Lino Pedra-Verde e de outros vates sertanejos, a escola de cantoria instalada na Onça Malhada, tornando-se aí um dos discípulos prediletos do mestre João Melchíades, o cantador da Borborema , com quem aprende "a Arte, a memória e o estro da Poesia" (APR, p. 55). Quaderna chega a especificar detalhadamente as lições recebidas nas aulas de João Melchíades, nas quais os alunos eram obrigados a verdadeiros malabarismos mentais para dominar a técnica de conversão de uma forma literária em outra: Começou ensinando-nos que havia dois tipos de romance: ‘versado e rimado’, ou em poesia; e o ‘desversado e desrimado’, ou em prosa. Era, mesmo, um exercício que nos obrigava a fazer: pegar um romance desrimado qualquer e ‘versá-lo’, contando em verso o que era contado em prosa (APR, p. 56 – grifos do autor).
Esse procedimento é tomado de empréstimo pelo narrador. d’A Pedra do Reino, que o incorpora a seu modo narrativo. Com efeito, o romance de Suassuna costuma apresentar redundantemente um mesmo fato sob duas modalidades discursivas diferentes: uma, contada em prosa, por um determinado personagem, e outra, transcrita em verso, por outro personagem ou pelo próprio Quaderna. É o caso, por exemplo, da Trágica desaventura do rei Zumbi dos Palmares [10], narrada pelo professor Clemente e versificada pelo narrador, que a readapta à sua maneira introduzindo-lhe novos ingredientes [11]. É o que ocorre também com a Marítima odisséia de um fidalgo brasileiro [12], relato feito por Samuel da viagem marítima de Jorge de Albuquerque Coelho, filho de Duarte Coelho, donatário da capitania de Pernambuco. Entusiasmo com a descrição da luta de Jorge de Albuquerque contra os corsários, durante a viagem a caravela que o transportou a Alcácer-Quibir para combater ao lado do Dom Sebastião, Quaderna reinterpreta os eventos narrados por Samuel à luz da história da "Nau Catarineta", cujo folheto passa a recitar [13]. Processo semelhante verifica-se ainda em relação à narrativa do encontro do cantador Lino Pedra-Verde com o diabo, O estranho caso do cavaleiro diabólico [14]. Quaderna primeiro narra a história que já lhe havia sido repassada pelo próprio Lino, é depois, apresenta os versos em que o cantador recria poeticamente o mesmo acontecimento [15].
Assim, não apenas a matéria dos folhetos quanto a sua forma literária conferem feição à estrutura romanesca. O reaproveitamento temático e formal dessa produção estética pode ser observado ao logo de todo o texto, onde são citados nada menos de trinta e sete folhetos ou "romances", para os quais o cantador João Melchíades propõe a seguinte classificação, conforme os ciclos a que pertencem: "Os romances de amor; os de safadeza e putaria; os cangaceiros e cavalarianos; os de exemplo, os de espertezas, estradeirices e quengadas; os jornaleiros, os de profecia e assombração" (APR, p. 58). Vários dos "romances" incorporados à tessitura narrativa d’A Pedra do Reino enquadram-se facilmente nos ciclos acima propostos [16]. Outros, no entanto, escapam a essa classificação, o que não diminui em nada a importância que adquirem na organização do enredo.
Sejam da autoria de um vate sertanejo, famoso ou anônimo, sejam da autoria do próprio Quaderna ou dos poetas João Melchíades e de seus discípulos, recriados ou não, citados literalmente ou readaptados ao sabor dos eventos dramatizados, os folhetos de cordel - a par das demais formas de expressão estética da cultura popular - assumem um relevo especial no corpus da obra. Ligam-se à substância mesma da existência do narrador, modulando conseqüentemente a ação narrada, que se tece a partir da experiência oralmente transmitida pelo imaginário poético do sertão. Como atesta Quaderna, ao apontar a sua iniciação literária: "Eu ouvia, decorava e cantava inúmeros folhetos e romances que me eram ensinados por Tia Filipa, por meu Padrinho-de-crisma João Melchíades Ferreira e pela velha Maria Galdina, uma velha meio despilotada do juízo, que nos freqüentava" (APR, p. 53 – grifos do autor).
Dentre os folhetos ou "romances" elencados na narrativa podem-se destacar alguns que interagem com maior intensidade sobre os eventos textuais, emprestando-lhes forma e conteúdo. Citem-se aqui apenas aqueles através dos quais são, direta ou indiretamente, representados os fenômenos do messianismo e do cangaço. A saber: a Catinga de la condessa, o Abecê de Jesuíno Brilhante, o Romance do valente vilela, Vida, aventuras e morte de Lampião e Maria Bonita, O encontro de Antônio Silvino com o valente Nicário, O reino da pedra fina, História de Carlos Magno e os doze pares de França, Vida, paixão e morte - sorte, símbolos e sinais e Nosso Senhor Jesus Cristo e A demanda do sangral (versão conferida pelo cantador Lino Pedra-Verde À Demanda do Santo Graal).

Verberações do imaginário caval(h)eiresco

Essa produção popular contaminada pelas matrizes da literatura erudita medieval exerce um grande fascínio sobre o narrador. Através dela, vai filtrando a realidade que o cerca e que se lhe oferece sempre mediatizada pela matéria ficcional. As cantigas que ouve da tia Filipa, entre as quais se destaca a Cantiga de la condessa, atuam em sua imaginação de forma indelével. O sentido cifrado dos versos cantados pela tia adquire para ele a força de uma sugestão mágica, sagrada e transfiguradora, capaz de metamorfosear a percepção do mundo exterior, engendrando para esse mundo uma nova significação:

"As palavras do canto marcavam-se mais ainda porque seu sentido era obscuro e estranho. Impressionando com o ouro, a prata, o mosteiro, o sangue, imediatamente tudo aquilo se tornava sagrado para mim, sacralizado pela luz da lua, que me parecia, ela também, uma bola de ouro, molhada pelo sangue de Aragão que pingava da noite no mato, à poeira de prata de sua luz." (APR, p. 52).

A Cantiga de la condessa funciona como uma das fontes desencadeadoras dos desejos de Quaderna. É o primeiro modelo literário a seguir e a imitar. É o primeiro texto que dirige seus impulsos em direção ao amor e à aventura. Ouvindo-a e representando-a nas dramatizações de roda comandadas pela tia, onde exerce o papel de cavaleiro pretendente à mão de uma das filhas da condessa, o menino Quaderna faz sua dupla iniciação: no mundo do amor e no mundo da cavalaria. Sob o efeito do "velho romance", mantém o primeiro e furtivo contato amoroso com Rosa, filha de um vaqueiro da fazenda, a qual se lhe afigura agora como uma princesa. O desejo pelo corpo da menina-moça, mediado pela linguagem obscura e fascinante da cantiga, é isomorfo à curiosidade pela letra do texto, de cujo sentido procura inteirar-se junto à velha parenta, introduzindo-se assim no universo cavaleiresco:

Sentia [...] necessidade de esclarecer algumas coisas que me tinham intrigado e fascinado na Cantiga de la Condensa. Perguntei a Tia Filipa o que era uma Condessa e o que significava um Cavaleiro.
- Isso são coisas antigas, Dinis! - disse ela – [...] Acho que uma Condessa é uma Princesa, filha de um fazendeiro rico, de um Rei como Dom Pedro I ou Dom Sebastião.
- E um Cavaleiro? – insisti, depois de anotar, em meu sangue, aquela noção de Princesa, misturada para sempre, agora ao cheiro e aos seios de Rosa.
- Um Cavaleiro - explicou Tia Filipa - é um homem que tem um cavalo e monta nele, para brigar de faca com os outros e casar com a filha do Rei!" (APR, p. 52 - 53 - grifo do autor).

Suplementada pela interpretação de tia Filipa, a Cantiga de la condessa fornece ao futuro postulante a romancista o substrato mítico a partir do qual fusiona a realidade fictícia dos textos medievais à realidade histórica do sertão, agora transfigura pelo imaginário da cavalaria. As definições de condessa e de cavaleiro, proposta pela tia, engendram uma correspondência entre o mundo da nobreza européia e o mundo rural do sertão. Se a condessa ou princesa (os termos se equivalem na definição da tia) é filha de um rico fazendeiro, este, por sua vez, se define por analogia com a figura do rei (Dom Pedro I) e com a do rei cruzado e cavaleiro (Dom Sebastião). A associação analógica entre fazendeiro, rei, cavaleiro motiva a nobilitação da classe oligárquica sertaneja, a "nobreza territorial", conforme a denomina Quaderna. Tal nobilitação se estende por contigüidade às classes dominadas no processo produtivo do sistema oligárquico do "outro Nordeste". Deste modo, tanto a oligarquia sertaneja quanto os vaqueiros, os almocreves, os cangaceiros e os demais componentes dos segmentos subalternos do sertão transubstanciam-se, pelas configurações épico-cavaleirescas de que são revestidos, em fidalgos ou nobres cavaleiros medievais. Não custa frisar que o conceito de cavaleiro apresentado por tia Filipa reúne alguns dos mais importantes ingredientes épicos das novelas de cavaleira: a posse e o uso do cavalo, a participação em combates sangrentos, a pretensão à mão da filha do rei.
A importância conferida ao cavalo no universo sócio-econômico e cultural do sertão torna-se, assim, como já o demonstraram alguns estudiosos da obra de Suassuna [17], fator decisivo para as verberações do imaginário cavaleiresco n’ A Pedra do Reino.
Na "civilização do couro", o emprego do cavalo é bastante diferenciado e bem mais intensivo do que na "civilização do açúcar", em que tem, juntamente com os "burros cambiteiros", seu uso quase restrito à tração[18]. No sertão nordestino, ao contrário, o cavalo não é um animal de tração, e sim de monta. Nessa função, comparece como elemento indissociável da economia criatória, onde constitui um meio indispensável de locomoção nos trabalhos da pecuária extensiva.
A sua utilização como montaria nas lides do gado, faz aparecer a figura do cavaleiro na pessoa do vaqueiro, dando continuidade, desta forma, ao mito cavaleiresco ou cavalariano. Segundo afirma Maria Isaura Pereira de Queiroz, "Em sociedade de criadores de gado, o ideal do cavaleiro andante, o gosto pelas aventuras e torneios tendem a perdurar"[19]. No contexto sociocultural do Nordeste pecuário, "o binômio cavalo/cavaleiro transporta, assim, na garupa toda uma mitologia medieval cavaleiresca". Reatualizando os valores culturais da cavalaria primitiva ibérica através da influência das novelas de cavalaria no imaginário popular do sertão - não apenas no nordestino, mas nas demais regiões dos sertões brasileiros - o cavalo ressurge, nesse contexto, como símbolo de status e qualificação social. Ao mesmo tempo enobrece o seu montador e é, por ele, enobrecido. A qualificação social que a posse ou mesmo o uso do cavalo empresta ao homem do sertão merece o seguinte comentário de Walnice N. Galvão (1972, p. 32-33), em estudo onde analisa a persistência da matéria cavaleiresca em Grande Sertão: veredas:

"As lides da pecuária extensiva, tal como foi e é praticada no sertão, desobrigam o trabalhador da labuta no cabo da enxada, de sol a sol, cotidianamente. De um lado, a perambulação que ela implica dá, no mínimo, um simulacro físico da liberdade; de outro, e não menos importante, é um ofício em que se anda a acavalo, e isto, por si só, é sinal de posição desde a Ibéria. [...] É assaz conhecido em nossa tradição o sinal de qualificação social que a posse do cavalo confere, implícita não só em sua propriedade, mas também, por contigüidade, em seu mero uso" [20].

No romance de Ariano Suassuna, a simples menção à figura do cavalo [21] e à do cavaleiro é suficiente para deslanchar toda uma visão idealizada do espaço rural sertanejo, projetada por um narrador afeito a ouvir desde criança os folhetos de cordel e os "velhos romances" medievais. Assim, ao explicar os efeitos desencadeados em sua imaginação pela Cantiga de la condessa, o que Quaderna ressalta em primeiro plano é essa imagética cavaleiresca, de onde extrai a substancia mítica para as associações que estabelece com a realidade histórica do sertão.
Entrelaçando o perfil do vaqueiro ao mito do cavaleiro andante, a matéria cavaleiresca incide, no discurso de Quaderna, de forma específica sobre os fenômenos do messianismo e do cangaço. A propósito do messianismo, observe-se a seguinte passagem do texto em que o narrador registra como a velha canção ensinada pela tia atua em sua mente, preparando-o para entender depois os acontecimentos ligados ao reduto messiânico da Pedra do Reino:

"[...] a Cantiga de La Condessa contribuiu danadamente para que eu me entusiasmasse quando, depois, soube a história da Pedra do Reino, com os Pereiras, Barões do Pajeú, montados a cavalo e comandando a tropa de Cavaleiros que iria acabar, a faca, com o Trono real dos Quadernas. Preparou-me, também, para entender o que, de fato, significava o rapaz do cavalo branco. É que, desde aquela noite com Rosa e a cantiga, toda vez que eu via um Vaqueiro montado a cavalo, com seu gibão, seu chapéu de couro e os arreios dos cavalos enfeitados de estrelas de metal, eu fingia que aquele metal era prata e dizia para mim mesmo: - ‘ Lá vai um cavaleiro montado em seu cavalo! Vai furtar Rosa , a filha mais bonita de La Condessa e do Rei Dom Pedro I, para levá-la para o mato, beijar seus cabelos cheirosos e acariciar os peitos dela, enquanto a bola de ouro da lua se molha no sangue de aragão que pinga da noite, em sua luz de moeda de prata!" (APR, p. 53).

Não apenas o texto citado, mas toda uma vasta produção literária cavaleiresca – pertencente ao ciclo carolíngio ou ao ciclo arturiano – subsidia recorrentemente a recriação simbólica do messianismo na narrativa de Suassuna. Divulgadas pela tradição oral dos poetas e cantadores sertanejos, tanto as façanhas de Carlos Magno e seus pares, quanto as aventuras dos cavaleiros da Távola Redonda se fundem, no discurso de Quaderna e no dos poetas João Melchíades e Lino Pedra-Verde, às ocorrências do fenômeno messiânico da Pedra do Reino. Nas aulas ministradas na escola de cantoria por João Melchíades, a História de Carlos Magno é um dos romances escolhidos para os exercícios literários a que o cantador submete seus alunos. Pela mediação desse romance, Quaderna correlaciona (como o fizera através da Cantiga de la condessa) os feitos guerreiros do universo da cavalaria aos eventos sanguinolentos da Pedra do Reino:

"Lia para nós a História de Carlos Magno e os Doze Pares de França, um ‘romance desversado’ que nos encantava pelo heroísmo de suas cavalarias, aquelas histórias de coroas e batalhas, que eu, por causa da Pedra de Reino, via logo, com princesas amorosas e desventuradas que, ou eram degoladas ou desonradas, mas disputadas sempre por Cavaleiros, em duelos mortais, travados a punhal, junto a enormes pedras e num Campo encantado embebido de sangue inocente. Inúmeros Cantadores e poetas sertanejos tinham, já, versado esse romance do Imperador Carlos Magno. Nós preferíamos as versões rimadas, não só porque eram mais fáceis de decorar, como porque a gente podia cantar os versos, acompanhando a solfa com o baião da viola, coisa que João Melchíades também não se descuidou de nos ensinar" (APR, p.56 - grifo do autor).

Dos romances do ciclo do rei Arthur destaca-se, sobretudo, a Demanda do santo graal, cuja matéria romanesca de cunho predominantemente místico-religioso fundamenta o tema da busca no romance de Suassuna: a busca do reino sebastianista da Pedra do Reino, que constituiu o próprio centro temático da "demanda novelosa" de Quaderna. A exemplo da História de Carlos Magno, o reaproveitamento dessa outra matriz cavaleiresca no texto em análise ocorre também via literatura popular. É na versão do cantador Lino Pedra-Verde acerca da Demanda do santo graal que se correlacionam a figura messiânica de Dom Sebastião e a do messias Sinésio, o Donzel do cavalo branco, às figuras de Percival e Galaaz, personagens do romance arturiano. Veja-se, a propósito, uma das estrofes do texto recriado por esse vate de Taperoá:

"Todos viram o santo Cálice mas só um o reverá. É nosso prinspo sagrado: Seu nome, quem saberá ? É Sinésio? É Galarraz? Sebastião? Percival? (APR, p. 596).

Ainda através do cordel, a literatura cavaleiresca permeia, com igual intensidade, a representação do cangaço n´A Pedra do Reino. A analogia cangaceiro/cavaleiro é constantemente postulada no discurso de Quaderna. Observe-se uma das muitas passagens da narrativa em que, traçando o perfil do cangaceiro, o narrador estabelece essa correlação: "Quanto aos cangaceiros, o que eu sei é que eles lutavam muitas vezes, montados a cavalo, como no dia em que atacaram Mossoró: portanto, são cavaleiros e fidalgos do sertão!" (APR, p. 216). A correspondência semântica entre cangaceiros e cavaleiros se dá numa dupla direção. Ela tanto confere um status nobiliárquico aos protagonistas do cangaço, quanto traveste em cangaceiros os cavaleiros medievais. No discurso de Quaderna, como nos dos folhetinistas por ele citados, cangaceiros e cavaleiros são termos sinônimos. Fundem-se ideologicamente num mesmo nível conceitual. A interpenetração dos dois termos já foi detectada na classificação proposta por João Melchíades, que reúne num só ciclo os "romances ‘cangaceiros e cavalarianos’". Comparece também no folheto de João Martins de Ataíde, um dos poetas em cujos versos o narrador se apóia para engendrar a equivalência entre os agentes históricos do cangaço e os heróis das novelas de cavalaria. Como afirma ele ao corregedor: "Os cangaceiros sertanejos são cavaleiros medievais, como os Doze Pares de França! E tanto isso é verdade que, na França na Idade Média, havia cangaceiros!" (APR, p. 280). No intuito de comprovar essa assertiva, Quaderna transcreve as seguintes estrofes do folheto de João Martins de Ataíde, nos quais o duque da Normandia e os cavaleiros com quem combate são assim configurados:

"Juntaram-se os Príncipes todos, nacionais e estrangeiros. Mandaram chamar Roberto, o bandido cangaceiro: deram a ele um Cavalo, gordo, possante e ligeiro. [...] Num certo dia encontrou, num esquisito Roteiro, trinta homens bem armados, sendo o chefe um Cangaceiro: antes de falar com eles, ameaçou-os primeiro". (APR, p. 280-281 - grifos do autor).

Raciocínio similar é extraído da leitura da produção poética de Lino Pedra-Verde, onde, através do mesmo mecanismo ideológico que norteia a perspectiva d’A Pedra do Reino, não somente os cangaceiros como os demais componentes da região sertaneja se caracterizam por analogia com a realidade do mundo feudal. A esse respeito observa Quaderna: "[...] nos folhetos que Lino Pedra-Verde me traz para eu corrigir e imprimir na tipografia da Gazeta de Taperoá, as Fazendas sertanejas são Reinos, os fazendeiros são Reis, Condes ou Barões, e as histórias são cheias de Princesas, cavaleiros, filhas de fazendeiros e Cangaceiros, tudo misturado!" (APR, p. 281).

Recursos do cordel na tessitura romanesca

Mediando os vários núcleos temáticos da narrativa, a literatura popular interage analogamente no processo de composição do romance [22] conferindo-lhe um forte caráter de oralidade e redundância. A influência do cordel na tessitura romanesca evidencia-se na própria explicitação do projeto literário de Quaderna. Pelos ensinamentos de João Melchíades, o narrador procura informar-se a respeito não só das técnicas, mas também da imagética recorrente às produções poéticas dos cantadores e folhetinistas. Uma dessas imagens é assim descrita pelo mestre da escola de cantorias:

"Todos os Cantadores, quando cantavam as façanhas dos Cangaceiros, costumavam construir, em versos, um Castelo para o seu herói. O de Antônio Silvino, por exemplo, era descrito assim:
Meu Castelo está fincado Em Pedra de grande altura. É feita de Pedra e cal Sua Muralha segura! O Governo tem lutado, Mas ele não foi tomado, pois a Pedra é muito dura" (APR, p. 67).

A imagem do "Castelo", que reaparece no folheto Desafio de Francisco Romano com Inácio da Caatingueira, intriga fortemente o narrador. Para entender o seu significado ele se vale mais uma vez das lições de seu padrinho de crisma. Fica então sabendo que o termo comporta várias acepções distintas e intercambiáveis. Significa ao mesmo tempo uma Fortaleza, um Marco, uma obra, uma edificação inexpugnável construída "com palavras e a golpes de versos". Ou seja, o "Castelo" simboliza, através dos diferentes estratos sêmicos a ele associados, "pedra", "muralha", "alicerce", "palavra", "golpes de versos", a própria produção poética dos cantadores: "uns lugares pedregosos, belos, inacessíveis, amuralhados, onde os donos se isolavam orgulhosamente, coroando-se Reis, e que os outros Cantadores, nos desafios, tinham obrigação de assediar, tentando destruí-los palmo a palmo, à força de audácia e de fogo poético" (APR, p. 68 – grifos do autor).
Jogando com a polissemia do termo (Castelo significa Fortaleza, Marco e Obra literária). Quaderna ambiciosa reconstruir simbolicamente o "Império" da Pedra do Reino de forma análoga à que os cantadores erigiam o seu "Castelo". "Era me tornando Cantador que eu poderia reerguer, na Pedra do Verso, o Castelo do meu Reino, reinstalando os Quadernas no Trono do Brasil [...]" (APR, p. 68 – grifo do autor). A idéia do projeto literário do narrador, que se confunde com o próprio Romance d’A Pedra do Reino, inspira-se, portanto, na arte dos trovadores e folhetinistas. Dela, Quaderna importa grande parte dos recursos estéticos que informam a elaboração do romance.
A incorporação desses recursos se faz sentir na forma mesma como o narrador dispõe os eventos narrados. Ao invés da tradicional divisão em capítulos, o romance se apresenta dividido em "livros" e subdividido em "folhetos". Em alguns casos a titulação dos "folhetos", é tomada de empréstimo ao título da história de cordel que subsidia o relato. Destaque-se como exemplo o "folheto" XLVI, O reino da pedra fina. O título é homólogo ao de um folheto de Leandro Gomes de Barros, embora o narrador tenha alterado o conteúdo do texto original de modo a ajustá-lo à sua versão mítica dos acontecimentos do reduto messiânico da Pedra [23]. Na designação de outros "folhetos" e na do próprio romance, Quaderna se utiliza não de um título específico de determinada obra de cordel, mas de um processo muito peculiar aos folhetinistas. Isto é, o emprego de "títulos duplos", que o próprio narrador se encarrega de explicar com exemplos extraídos dessa produção literária: "Quando o romance era muito grande, era publicado em folhetos separados, como a História de Alonso e Marina, dividido em dois: Alonso e Marina, ou A força do amor e a morte de Alonso e a vingança de Marina" (APR, p. 63). Seguindo esse modelo, a narrativa em estudo intitula-se Romance d’A Pedra do Reino e o príncipe do sangue do vai- e-volta [24] e constitui apenas a primeira parte da trilogia projetada pelo autor e enfeixada ela também sob uma dupla denominação: A maravilhosa desaventura de Quaderna, o decifrador e a demanda novelosa do reino do sertão.
No interior do romance, o "título duplo" reaparece no "folheto" LXVI, A filha noiva do pai, ou Amor, culpa e perdão [25]. Neste caso, à semelhança do que também ocorre na literatura de cordel, o desdobramento de título visa a suscitar a curiosidade do leitor, reduplicando num dos seus segmentos sintagmáticos o teor do enredo já anunciado no segmento precedente. Assim, a relação incestuosa de Genoveva com o próprio pai, sugerida no corpus do referido "folheto" através do Romance de dona Silvana, encontra-se antecipada e redundantemente aludida nos dois componentes frásicos que integram o título. Obedecem ainda ao mesmo esquema de titulação os "folhetos" LXIV e LXVII, respectivamente denominados A cachorra cantadeira e o anel misterioso e O emissário do azul e as juras de castidade [26].
Imitando a estrutura compósita, fazendo o reaproveitamento literal ou não dos títulos do cordel, os "folhetos" da narrativa assimilam também todo um léxico característico dessa produção popular. Termos como "romance", "caso", "história", "aventura", desaventura", "mistério", "misterioso", a par de outras expressões que reforçam o caráter enigmático e sensacionalista do enredo – "crime", "paixão", "profecia", "encantamento", "assombração", "visagem", diabólico" "sagrado", "terrível", "fatídico", "astroso", "enigma", "logogrifo", "cifrado", "estranho", etc. – comparecem com freqüência, seja nas denominações dos "capítulos" seja no conteúdo do relato [27].
Além dos aspectos descritos, vários outros procedimentos retóricos do discurso do cordel contaminam a estrutura romanesca d’A Pedra do Reino, contribuindo para acentuar o seu parentesco com as matrizes estéticas da cultura popular. Citemos mais dois deles: as explicações introdutórias e as ilustrações, ambas destinadas a despertar a curiosidade e a prender a atenção do leitor. A propósito do que já fizera com os títulos, Quaderna encaixa no seu texto não apenas esses procedimentos, quanto a sua explicitação. Ao referir-se aos breves resumos que antecipam o tema dos folhetos afirma ele: Outras vezes, o folheto trazia na primeira página, por baixo do título, uma espécie de explicação, destinada a causar ‘água na boca’ aos que iam comprá-lo. Assim, por exemplo:

O PRÍNCIPE JOÃO SEM MEDO E A PRINCESA DA ILHA DOS DIAMANTES ___________________________________________________

ROMANCE DE PÁGINAS MISTERIOSAS, ONDE SE VÊ UM JOVEM PRÍNCIPE VIAJANTE E ERRANTE PELAS MAIS TEME- ROSAS ESTRADAS, EM BUSCA DE INTRINCADOS LABIRINTOS QUE LHE CAUSASSEM MEDO, AMOR, SACRIFÍCIO E TRIUFO! (APR, p. 63).

Recurso similar, com a mesma função redundante e apelativa, é empregado no romance de Suassuna. Com efeito, observam-se aí, na página que antecede o início da narrativa, e logo abaixo do título, comentários explicativos acerca dos principais episódios da obra, subseqüenciados por duas estrofes contendo uma inovação a "Musa do Sertão", e um enfático apelo à atenção do leitor. Veja-se a transcrição a seguir :





O mesmo apelo folhetinesco encontra-se no reaproveitamento das ilustrações do cordel, que figuram na folha do rosto do romance, nas páginas precedentes às explicações introdutórias e no corpus da narrativa, onde atingem um total de vinte e seis. Recurso expressivo recorrentemente utilizado pelos folhetinistas, as ilustrações comparecem nessa produção não como um mero dado ornamental, mas sobretudo como reforço à matéria narrada. São uma forma de reduplicar, sob outra modalidade representacional - a xilogravura - o que se está contando ou já foi contado no enunciado discursivo. Pelo seu caráter imagético elas exercem um grande fascínio sobre o leitor, dando asas à sua imaginação, ao mesmo tempo em que o ajudam a fixar o teor do relato com o qual geralmente se correlacionam. A reiteração do conteúdo da história pelas xilogravuras imprime aos folhetos de cordel um forte grau de redundância capaz de aguçar duplamente a curiosidade de quem lê. O leitor se compraz não apenas em ler/ouvir a narração, ela mesma já bastante repetitiva, mas também visualizar pela sugestão icônica os lances aventurescos tratados nos textos. Neste sentindo, as xilogravuras funcionam como um chamariz a mais para reter o interesse do destinatário e assegurar a recepção da obra.
N’A Pedra do Reino, a ilustrações prestam-se a produzir efeitos semelhantes. O vínculo que mantêm com as ilustrações do cordel é registrado pelo próprio narrador, que insere na sua narrativa um personagem xilógrafo, o seu irmão Taparica Quaderna, encarregado de talhar não só as imagens dos folhetos impressos na gazeta local, como as demais xilogravuras que ilustram as descrições do romance. Assim, ao falar sobre a bandeira conduzida por um dos “matinadores” da cavalgada de Sinésio, Quaderna primeiro pede ao cantador Lino Pedra-Verde que a descreva num de seus folhetos e depois encomenda ao seu irmão Taparica uma cópia xilográfica do mesmo objeto, para que possa anexá-la aos autos da Apelação que dirige ao Supremo Tribunal:

"Meu irmão bastardo, Taparica Pajeú-Quaderna, é cortador-de-madeira e ‘riscador’ de todas as gravuras com que ilustro as capas dos ‘folhetos’ impressos por mim, aqui, na Gazeta do Taperoá. Pedi a ele que fizesse uma cópia dessa bandeira e anexo a gravura resultante aos autos desta Apelação, pois ela é peça importante no processo que veio bater comigo aqui, na Cadeia de Taperoá" (APR, p. 9).

As xilogravuras se inscrevem, portanto, no âmbito do romance sob um duplo registro: visual e lingüístico. Ou seja, como produção imagética e como tema no interior do tema: matéria à qual o narrador constantemente se reporta para explicitar as inserções que dela faz no processo narrativo. Neste duplo registro, as ilustrações integram ao mesmo tempo a configuração plástica e a metalinguagem do texto.
Em nível plástico, o papel que exercem na tessitura do enredo é análogo ao registrado a propósito do cordel. Absorvendo o assunto romanesco, as ilustrações se prendem aqui também a aspectos da própria ação dramatizada ou a elementos descritos no plano fabular. Assim, as pedras do reino, as bandeiras da comitiva do donzel, o cavaleiro diabólico, a Bicha Bruzacã, Carlos Magno, o duelo de Clemente com Samuel, as insígnias e brasões, entre outros elementos que constituem temas dos “folhetos” do romance reaparecem reduplicados nas xilogravuras inseridas ao longo do texto, suplementando, pela repetição diferenciada dos mesmos motivos, o já dito de outra maneira no enunciado do discurso.
Em alguns casos, o emprego de determinadas ilustrações chega a ser abusivo. Veja-se o exemplo das pedras do reduto messiânico que se ligam à temática central da obra. Além de serem fartamente mencionadas e descritas no discurso de Quaderna, no de outros personagens e em textos encaixados na narrativa, as pedras do reino aparecem em sucessivas reproduções xilográficas feitas por Taparica, a partir de um desenho do padre Francisco José Correia de Albuquerque - anexado à crônica de Antônio de Áttico de Souza Leite [28], um do historiadores que subsidiam a narrativa de Quaderna sobre a Pedra Bonita - e de uma fotografia tirada por Euclides Villar. O conjunto dessas xilogravuras oferece uma visão multifacetária do mesmo objeto, captando-o sob vários ângulos e formas nos quais se visualizam sempre novos detalhes, inseridos pelo xilógrafo mediante orientação do narrador. Assim, a segunda xilogravura inspirada no desenho do padre é reproduzida duas vezes no romance, de maneiras diferentes. Aparece, de início, ao lado da figura que representa um dos componentes do duelo, na página precedente aos comentários introdutórios, encimando o título da obra [29]. É retomada posteriormente em close-up no “folheto” XXIII, “Crônica dos Garcia-Barretto”, acrescida da figura do “rei” João Ferreira-Quaderna com suas insígnias régias [30]. Os exemplos citados vêm reproduzidos abaixo. Às xilogravuras das pedras precedem aqui a foto e o desenho que lhes servem respectivamente de modelo:








Em outros casos, como o que se refere à Bicha Bruzacã, as reproduções distintas de uma mesma imagem possibilitam registrar as metamorfoses assumidas pelo animal em suas duas aparições [31], conforme a seguir:





Uma mesma ilustração pode vir também reduplicada em mais de uma página do livro, alterando-se apenas a sua dimensão. É o que ocorre com a figura do cavaleiro diabólico que antecipa na folha de rosto uma das cenas relatadas no romance (o encontro de Lino Pedra-Verde com o diabo). Na edição consultada, a figura do cavaleiro surge pela primeira vez nessa folha [32], inscrevendo-se, logo abaixo do título, em tamanho reduzido. Retorna depois ampliada no “folheto” XXXIII, onde se narra o episódio [33]. Vejam-se, a propósito, as reproduções abaixo:


Além de reduplicarem o discurso do narrador, as xilogravuras são também por ele reduplicadas. Não satisfeito em fazer acompanhar o relato de sua representação visual, Quaderna ainda se dedica a interpretar o significado do que é imageticamente reproduzido. Algumas das legendas subscritas nas ilustrações destinam-se a este fim. Nelas, Quaderna explica qual o modelo que lhes serviu de base, a configuração de cada um de seus elementos, enxertando às vezes comentários avaliatórios sobre certos pormenores aí representados. A propósito, observem-se especificamente as legendas das xilogravuras reproduzidas anteriormente.

Quaisquer que sejam as readaptações introduzidas no reaproveitamento do recurso imagético do cordel, não resta dúvida que Quaderna preserva-lhe a função básica: a de garantir, através da redundância que confere à narração, o interesse e a atenção do leitor. Ao atar os diversos fios de sua complexa malha textual, o narrador d’A Pedra do Reino se vale não apenas da “isca da repetição”, mas também do “anzol da surpresa”, para usar uma terminologia de Silviano Santiago [34]. Combina, assim, no processo romanesco dois traços básicos das formas populares das narrativas seriadas ou não. Ambos com igual destino: espicaçar a curiosidade e seduzir o leitor, mantendo-o atento ao desenrolar da história. O primeiro recurso já foi acima examinado. Veja-se o segundo.

Se se observar a construção do enredo, verifica-se que ele não obedece a uma seqüência linear, a um continuum de causa e efeito peculiar a certos procedimentos clássicos da narração. Ao invés, a disposição dos eventos fictícios rompe com toda a linearidade seqüencial, com a ordem temporal que preside o encadeamento lógico dos acontecimentos no interior do discurso. O rompimento com a ordem cronológica pode ser constatado no próprio “folheto” de abertura [35]. Este não trata do começo da história, remete antes ao seu fim. Ou seja, os acontecimentos aí apresentados ligam-se ao resultado dos interrogatórios a que foi submetido o narrador e que terminam conduzindo-o à cadeia, onde se encontra no presente da enunciação (1938), redigindo o memorial destinado a recuperar as causas que motivaram sua prisão.

A reconstituição dessas causas, minuciosamente conduzida para prender a atenção do leitor, se dá por caminhos labirínticos. É intercalada por uma série de relatos entrecortados, que vão desde a descrição da entrada da comitiva de Sinésio na Vila de Taperoá (“folhetos” II e III) até o episódio final, em que Quaderna encerra o seu primeiro depoimento ao corregedor e passa a descrever o sonho no qual aparece realizando o seu desejo maior: a sagração pela Academia Brasileira de Letras como “Gênio da Obra da Raça” (“folheto” LXXXV).

Os vários “folhetos” que subdividem o romance não se justapõem de modo a assegurar o desenvolvimento progressivo e ininterrupto das ações narradas. Reagenciam-se, ao contrário, por uma técnica de “cortes” encaixes e digressões que visam a suspender temporariamente o relato e a postergar a continuação da intriga, o que acentua o tom enigmático da narrativa, gerando, conseqüentemente, uma forte expectativa no leitor.

Deste modo, a descrição da cavalgada do Donzel é interrompida pelo folheto subseqüente (“folheto” IV), onde se resgatam as circunstâncias enigmáticas da morte de Dom Sebastião Garcia-Barretto e o misterioso desaparecimento de Sinésio, ocorridos em 1930, isto é, cinco anos antes dos eventos narrados nos “folhetos” II e III. Os “folhetos” seguintes (V a X) retroagem ao século passado, especificamente aos anos de 1819 a 1838. Neles, Quaderna apresenta a sua genealogia paterna, a crônica do Império do Reino, descrevendo os sucessos sanguinolentos dos redutos messiânicos da Serra do Rodeador e da Pedra Bonita. Avançando no tempo, os “folhetos” XI a XXII referem-se a diversos acontecimentos posteriores da vida do narrador: sua adolescência e mocidade na fazenda Onça Malhada, sua iniciação literária com tia Filipa e com os cantadores do sertão, a viagem que, já adulto, empreende à serra da Pedra Bonita, as aventuras em que se lança durante o trajeto, culminando com a sua autocoroação como Rei do V Império. No “folheto” XXIII, verifica-se um novo recuo temporal. Aí o narrador traça a primeira versão sobre sua genealogia materna, a crônica dos Garcia Barretto, reportando-se a fatos ligados aos princípios da colonização do Brasil. Os “folhetos” XXIV e XXV destinam-se à apresentação dos professores de Quaderna, Clemente e Samuel, e de suas respectivas concepções político-filosóficas e literárias. O último destes “folhetos” oferece ainda uma segunda versão acerca da linhagem dos Garcia-Barretto, ligando a origem dessa família à figura de Dom Sebastião, o que dá ensejo à referência à luta de Dom Sebastião na Batalha de Alcácer-Quibir em 1578 e ao relato da chegada do mito sebastianista no Brasil, temas retomados posteriormente em outros “folhetos”. Os “folhetos” XXVI a XXXVI falam da fundação da “Academia dos Emparedados do Sertão” e das discussões de Quaderna com seus dois mestres acerca da “Obra de Gênio da Raça”. Daí passa-se a matéria dos folhetos XXXVII a LXXXV, referentes ao inquérito. A primeira parte (“folhetos” XXXVII a XLVIII) apresenta os antecedentes do interrogatório: a denúncia anônima que aponta o envolvimento de Quaderna, de Sinésio e dos demais integrantes da comitiva do Donzel em alguns fatos políticos da história do Brasil (em especial, a Coluna Prestes, em 1926, a “Guerra de Princesa”, em 1930, e a “Intentona Comunista” de l935); o duelo de Clemente com Samuel; o encontro de Quaderna com a morte (a “Moça Caetana”), entre outros. A segunda parte (“folhetos” XLIX a LXXXV) diz respeito ao interrogatório propriamente dito, onde através de negaceios e manobras, de avanços e recuos, o narrador vai reconstituindo para o corregedor alguns dos principais episódios já abordados anteriormente e acrescidos agora de novos pormenores. Imbricados nesta reconstituição surge uma série de histórias, lendas e “casos” que servem a um duplo objetivo: despistar o corregedor o prolongar o suspense da narrativa.

Acentuando o suspense e o clima de mistério que permeia todo o romance, a narrativa termina inconclusa. O narrador deixa de esclarecer algumas das principais questões por ele ardilosamente propostas e que constituem, segundo afirma, o “próprio centro e nó” de seu enigma: o assassinato de Dom Pedro Sebastião Garcia-Barretto, o misterioso desaparecimento e retorno do rapaz do cavalo branco, cuja verdadeira identidade também não chega a ser devidamente esclarecida. Ao lado desses enigmas indecifráveis, há ainda uma série de acontecimentos que se perdem de vista no decurso do enredo. A saber: “a demanda novelosa do Reino”, constantemente anunciada por Quaderna nos seus depoimentos ao corregedor, a busca do tesouro de seu tio e padrinho, o circo ambulante destinado a angariar recursos para custear a busca do tesouro perdido. Assim como o processo romanesco, o processo judicial termina igualmente em suspenso à espera da decisão do Supremo Tribunal, a que recorre o narrador no início do texto.

A técnica de montagem dos “folhetos”, a linguagem apelativa dos relatos, e a inconclusão da história aproximam, conforme já demonstrou Guaraciaba Micheletti, [36] a estrutura do romance de Suassuna da estrutura do folhetim. De fato, os vários mecanismos destinados a engendrar o suspense e a reforçar o enigma romanesco - os cortes, encaixes, antecipações e digressões - são recursos característicos dessa forma de narrativa popular e seriada. No texto de Ariano, a utilização desses recursos, através dos quais determinados episódios permanecem em suspenso para serem retomados no “folheto” seguinte ou em “folhetos” posteriores, obedecem, segundo acentua a mencionada ensaísta, à técnica do “relato entrecortado, imposto pelo ritmo do jornal ao folhetim [37]. Combinados a esses dispositivos, Guaraciaba Micheletti aponta vários outros que assinalam a correspondência entre certos traços da obra em estudo e os estereótipos do folhetim: “as ações insólitas”, “a tipificação dos personagens”, “os aspectos dramáticos”, etc., a que se soma ainda o anúncio folhetinesco remetendo para a continuação da história no volume II da trilogia [38]:

"Aguardem novas e sensacionais aventuras de Quaderna, O Decifrador, no livro, a sair, O REI DEGOLADO". (APR, p. 626).

A legitimação do popular no processo narrativo e na temática d’A Pedra do Reino corresponde ao intento básico perseguido pelo narrador: elaborar, a partir do legado dessa tradição estética, uma Obra que, erigindo-se sob a marca da unificação cultural, reúna “harmonicamente” os valores populares e os valores eruditos. A fusão desses valores encontra-se no cerne mesmo do projeto literário de Quaderna, destinado a resgatar as raízes mais “autênticas” da nacionalidade brasileira. A busca da identidade nacional constitui, portanto, a mola mestra que aciona a elaboração do romance, em consonância com os pressupostos regionalistas do autor, encetando os acirrados debates travados entre Quaderna e seus dois mestres acerca da “Obra do Gênio da Raça”. O rastreamento dessa polêmica possibilita apreender - como tivemos ocasião de constatar em outro trabalho [39]– os pressupostos estéticos e ideológicos norteadores das diferentes concepções nacionalistas postas em confronto ao longo da narrativa.

NOTAS:

[1] Foram consultadas as seguintes edições das obras:
REGO, José Lins. Pedra Bonita. 9. Ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1979.
­­­­­­­­­­­­­­_________. Cangaceiros. 7.ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1980.
SUASSUNA, Ariano. Romance da Pedra do Reino e o príncipe do sangue do vai-e-volta; romance armorial-popular brasileiro. 4.ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1976.[2] Essas expressões vêm contidas na página que antecede o início da narrativa (p.02), destinada a oferecer um resumo dos principais episódios tematizados na obra. Aparecem ainda em vários “folhetos” do romance. Cf. especificamente “folheto” LI, “O Crime Indecifrável”, PP 290 e 291.
[3] As explicações acerca do projeto literário de Quaderna se disseminam praticamente ao longo de todo o romance. Elas se concentram, no entanto, em dez “folhetos” (XXVII – XXXVI), onde o narrador e seus dois mestres, Clemente e Samuel, travam uma longa e acirrada polêmica, apresentando suas respectivas teorias sobre a “Obra do gênio da raça”. [4] O título de diascevasta atribuído por Quaderna a si mesmo, e as explicações sobre o significado desse termo encontram-se nas páginas 269 e 270 do romance.
[5] APR. P. 131.
[6]Interessa observar que a coluna literária assinada semanalmente por Ariano Suassuna no Jornal da Semana, de Recife, no período de dezembro de 1972 a junho de 1974, intitula-se “Almanaque armorial do Nordeste” e traz, acima do título, uma explicação introdutória, que se mantém do primeiro ao último número, com os seguintes dizeres: “Contendo idéias, enigmas, informações, comentários e a narração de casos acontecidos ou inventados em prosa e em verso num ‘Livro Negro do Cotidiano’ pelo bacharel em Filosofia e Licenciado em Artes Ariano Suassuna” (grifo nosso).
[7] Cf. APR. P. 147.
[8] Op.Cit., p.30.
[9] O “folheto” XII, em que Quaderna explicita sua iniciação literária, é denominado justamente “O Reino da Poesia”. Cf. Op. Cit. p. 53.
[10] Op. Cit., “folheto” XXXII, p 151-155.
[11] Op. Cit. P 153.
[12] Op. Cit. “folheto” XXXIV, PP 161-172.
[13]Op. Cit. PP. 166-168.
[14] Op. Cit. “folheto” XXXIII, PP 155-161.
[15] Op. Cit. PP. 158-159.
[16] Ver a propósito, LIND, George Rudolph. Ariano Suassuna romancista. Revista Colóquio Letras. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian,(17), jan. 1974, PP 36-37.
[17] Cf. Especificamente SANTOS, Idelette Fonseca dos. Le Roman de chevalerie ET son interpretation par um éscrivan brésilien contemporain: A Pedra do Reino de Ariano Suassuna. Paris: Université de Paris III, Sorbonne Nouvelle, Maitrize D’ Enseignement de Lettras Modernes, 1974 (mimeo).
[18] No Nordeste açucareiro o emprego do cavalo como montaria ficou praticamente restrito à locomoção do senhor de engenho na fiscalização do eito ou de seus passeios domingueiros. O abismo entre a condição de senhor e a condição de escravo era suficientemente demarcado para dispensar o uso do cavalo como acessório distintivo de classe.
[19] QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. Os cangaceiros. P. 37.
[20] GALVÃO, Walnice Nogueira. O sertão e o gado. In: As formas do falso. São Paulo: 1972. PP. 32-33. (grifo da autora).
[21] Vale salientar que, além de citado constantemente ao longo do romance, o cavalo constitui tema específico do “folheto” XL, “Cantar dos nossos cavalos” ( SUASSUNA, 1976, p. 210-219).
[22] O reaproveitamento das formas populares na técnica narrativa d´A Pedra do Reino tem sido apontado, com maior ou menor acuidade, por alguns ensaístas da obra de Suassuna. Dentre a bibliografia consultada, o estudo mais completo e sistemático neste sentido é o de MICHELETTI, Guaraciaba (1983), ensaísta já mencionada acima. O presente tópico deste trabalho, rastreando alguns dos principais aspectos abordados pela referida autora, difere, todavia, quanto ao objetivo proposto. Interessa-nos, sobretudo, a partir do exame dos recursos estéticos populares que enformam e informam conjuntamente os temas do messianismo e do cangaço e o processo de composição d´A Pedra do Reino, resgatar ao longo da análise a ideologia subjacente à incorporação do popular nos vários níveis do romance de Ariano. Cf. nesse sentido a obra mencionada na nota 1 desde ensaio.
[23] Cf. Op. Cit., PP 254-257 e BARROS, Leandro Gomes. O reino da pedra fina. In. Literatura popular em verso (Antologia) Apresentação de Idelette Muzart Fonseca dos Santos. Rio de Janeiro: Fundação Casa Rui Barbosa; João Pessoa: Universidade Federal da Paraíba, 1977. PP. 274-280, v. III.
[24] Em entrevista dada ao Jornal Correio da Manhã em 08/10/1971, já mencionada no tópico 1.3 deste trabalho, Ariano Suassuna afirma que o título do romance em estudo baseou-se num folheto da literatura de cordel denominado Romance da princesa da pedra fina e o príncipe do reino do vai não torna. Cf. A Visão Mágica do Nordeste de Ariano Suassuna (o Auto da Compadecida). Correio da Manhã. Rio de janeiro, 08 out. 71.
[25] Op. Cit., p. 362-392.
[26] Op. Cit., respectivamente, p. 362 e 392.
[27] Constatam-se entre outros, os seguintes títulos: “O caso da estranha cavalgada”, “A aventura da emboscada sertaneja”, “O romance do castelo”, “A trágica desventura de Dom Sebastião, rei de Portugal e do Brasil”, “A visagem da moça caetana”, “O crime indecifrável”, “A astrosa desaventura dos gaviões cegadores”.
[28] Consultou-se a edição de 1903, publicada no v. XI da Revista do Instituto Archeologico e Geographico de Pernambuco. O desenho das pedras do padre Francisco José Correia de Albuquerque, que segundo nota editorial daquela edição não consta nem da primeira edição da crônica de Áttico de 1875, no Rio de Janeiro, nem de sua reimpressão de 1898, em Juiz de Fora, e cujo modelo original é conservado, ainda de acordo com a mencionada nota, no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, encontra-se na página 248 do referido volume.
[29] Op. Cit., p. 01.
[30] Op. Cir., p.112.
[31] Op. Cit., pp. 276 e 332.
[32] Na primeira edição, o cavaleiro diabólico surge na capa do romance. Da segunda edição em diante, a capa é ilustrada com uma gravura estilizada das pedras do reino, deslocando-se a figura do cavaleiro para a folha de rosto.
[33] Op. Cit., p. 160.
[34] SANTIAGO, Silvano. Uma ferroada o peito do pé. In. Vale quanto pesal Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982, p. 163.
[35] Pequeno Cantar Acadêmico e Modo de Introdução. Op. Cit., pp. 03-06.
[36] MICHELLETI, Guaraciaba. Formas da épica n’ A Pedra do Reino. In: Op. Cit.,pp. 08-24.
[37] Idem; Ibdem, p. 08.
[38] Idem; ibdem. P. 08-24. Não é por acaso qe o segundo volume da trilogia, História d’o rei degolado nas caatingas do sertão; ao sol da onça caetana, tenha sido publicado pela primeira vez em folhetim semanal no Diário de Pernambuco, de novembro de 1975 a maio de 1976.[39] A questão foi detimamente analisada por nós em “A Obra do Gênio da Raça e a busca da identidade nacional”, subcapítulo da tese de doutorado referida na nota 1 deste ensaio.