Author: Sônia Ramalho de Farias
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Um dos procedimentos literários característicos da chamada pós-modernidade é a recriação de textos que incitam à prática da reescritura, em observância ao modelo produtor denominado por Barthes em S/Z de textos reescrevíveis: aqueles que, ao contrário dos textos legíveis, os textos clássicos por excelência, suscitam no leitor o desejo de transgredir o condicionamento passivo e burguês suscitado pelo modelo representacional fechado dos textos apenas legíveis, para se aventurar ele também como produtor de textos.
Por iniciativa de Rinaldo de Fernandes (organizador do livro), a editora Garamond lançou em 2006 a coletânea Quartas Histórias: contos baseados em narrativas de Guimarães Rosa, numa homenagem conjunta de ficcionistas, ensaístas e poetas brasileiros ao escritor mineiro, por ocasião dos sessenta anos de publicação de seu livro de estréia, Sagarana (1946) e do cinqüentenário de lançamento do único romance do autor, Grande sertão: veredas (1956). A coletânea apresenta uma variada gama de textos, de diversificados autores e gêneros, renomados ou promissores representantes da literatura contemporânea, que relêem/reescrevem, sob inusitados ângulos e recortes, a produção literária do consagrado ficcionista, oferecendo significações suplementares à ficção rosiana.
A obra divide-se em três partes: Dois Poemas, Primeiras Histórias e Quartas Histórias. A primeira, uma celebração poética da prestidigitação fabular de Rosa é, ao mesmo tempo, um exercício de fingimento de seu mecanismo de criação. Reúne o conhecido poema de Carlos Drummond de Andrade, “Um chamado João”, originalmente publicado no Correio da Manhã, em 22.11.1967, três dias após a morte de Guimarães Rosa, e a poesia “João Guimarães Rosa”, de Marcos Accioly, do livro ainda inédito Um auto para Canudos. A segunda parte contém textos que, de uma forma ou de outra, elucidam o processo de composição e as circunstâncias de produção e recepção da obra de Rosa. O primeiro deles, “Matita-Perê”, de Antônio Carlos Jobim, extraído do livro Cancioneiro Jobim 1971-1982, oferece um depoimento do compositor sobre a gênese de seu disco homônimo, de 1973, onde dialoga com a literatura de Rosa. Segue-se a esse uma crônica de Graciliano Ramos, publicada originalmente na revista A casa (RJ., jun.1946), “Conversa de bastidores”, em que o escritor alagoano aproveita a polêmica decorrente do lançamento de Sagarana para narrar sua participação no júri do Concurso Humberto de Campos ,1937, da livraria José Olympio, ao qual Guimarães Rosa concorreu com o título Contos, origem do livro de 1946, obtendo o segundo lugar. Em “João, o Rosa”, a verve literária de Affonso Romano de Sant’Anna, mensurando homem e obra, vida e mímesis, recria pelo simulacro lingüístico da crônica os meandros da “escrituração” do autor de Tutaméia. Os dois ensaios que fecham a segunda parte da coletânea, “Esse mundo chamado João” e “Sagarana causou polêmica”, de Daniel Piza e Sônia Maria van Dijck Lima, respectivamente, contextualizam a literatura do escritor, seja situando as condições de produção de sua obra, caso do primeiro ensaio, seja pelo resgate específico do contexto de recepção do livro de estréia, sobretudo do debate crítico gerado em torno do conceito de regionalismo que norteia o “horizonte de expectativa” da época, matéria do segundo ensaio, baseado em minuciosa pesquisa de arquivos. A última parte, que leva o título homônimo da coletânea e justifica o projeto editorial do livro congrega trinta e nove autores brasileiros, de gerações e regiões distintas, que recontam as histórias de Sagarana e releêm o universo ficcional de Grande sertão: veredas, a partir de frases ou passagens do romance, sem excluir o diálogo intertextual com outras narrativas de Rosa ou com a produção de outros escritores brasileiros.
O processo de releitura/reescritura dos textos matrizes reatualiza as palavras com que o narrador de “Conversa de bois” busca assegurar metaficcionalmente a transmissibilidade das histórias a ele repassadas pelo personagem Manuel Timborna, velho contador de “causos”, no conto de Sagarana: “-Só se eu tiver licença de recontar diferente, enfeitado e acrescentando ponto e pouco...” No caso dos ficcionistas que assumiram o desafio de reescrever Rosa, o recontar diferente pressupõe uma práxis escritural que se afirma pela paródia ou pelo pastiche crítico e criativo do intertexto que lhes serve de paradigma. A estratégia dialógica pressupõe, assim, uma atitude ambígua, simultaneamente fiel e transgressora ao modelo recriado. Um dos exemplos mais significativos dessa estratégia é a retomada do conto “Sarapalha” por vários contistas em diferentes versões que re-significam o conto original. A exemplo de “Caso na roça”, de Amador Ribeiro Neto, que troca o cenário mineiro pela capital da Paraíba e funde o rural e o urbano, introduzindo, via processo de colagem, “ícones da cultura pop e referências ao mundo cyber”, conforme explicita o próprio autor , cuja narrativa substitui a relação heterossexual da história anterior por uma relação homossexual e a maleita que vitima os primos Ribeiro e Argemiro pela aids. Ou a versão deste mesmo conto na autoria de Marília Arnaud, “Trancelim” que desloca o centro do foco narrativo dos personagens masculinos, para o casal de amantes, principalmente para a figura feminina, desnudando em detalhes tórridos o erotismo da relação adúltera, silenciado ou desfocado na reconstituição mnemônica dos protagonistas do conto de origem. “Sarapalha” serve ainda de pretexto para a criativa narrativa de W. J. Solha, que, dialogando com a crítica literária e contracenando com escritores internautas cujos codinomes são “tirados da portentosa galeria de personagens do escritor mineiro”, empreende uma reconstituição genética das diferentes versões datilografadas e dos manuscritos de “Sarapalha”, propondo-se a uma produção coletiva e “ideal” do conto. Vale ressaltar , também, a retomada de “A volta do marido pródigo”, ambientado em um morro carioca, nas gírias de um traficante de drogas, no texto “Lalino tá na área”, de André Sant’Anna. E ainda a encenação teatral desse mesmo conto no texto de Carlos Ribeiro “Traços cenográficos de Salino Lalãthiel”, onde as rubricas textuais situam ironicamente um “diretor pós-moderno, seja lá o que isto significa”, às voltas com a árdua tarefa de adaptar para o teatro o texto de Rosa. Dignos de menção são os contos “Mané Fulô”, de Cecília Prada, baseado em “Corpo fechado”, e “Ceição Ceiçim”, de Silviano Santiago, inspirado em duas frases de Grande sertão: veredas. Ambos privilegiam um dos temas recorrentes em Guimarães Rosa e em outros representantes do modernismo brasileiro, a questão da bastardia nas famílias obscuras ou nas oligarquias nacionais, tema aliás que o autor do pioneiro pastiche literário entre nós, Em Liberdade (1981) , revisita nas páginas de seu último romance, as igualmente fingidas memórias de O falso mentiroso (2004). Outra narrativa dentre as mais reelaboradas de Sagarana o “Duelo” apresenta configurações inusitadas na adaptação para a linguagem do “game” na versão “Mortal combat”, de Marcelino Freire, onde a luta entre os contendores transforma-se numa briga virtual e a técnica narrativa simula a montagem cibernética. A versão de Luzilá Gonçalves Ferreira para o mesmo conto oferece outro procedimento estético. Sem consideráveis modificações no cenário rural e mantendo a feição regionalista do conto de origem, com uma ligeira dicção pernambucana, o texto transgride o universo machista e patriarcal do conto de Rosa, pela mudança de perspectiva narrativa, agora a cargo da mulher motivadora do duelo, Silivana, esposa de Turíbio Todo. Jocosa, ambígua e maliciosamente, ela reconstitui a contenda e o desfecho da luta entre os rivais e insinua outro final, feliz e mais prazeroso, para os contendores e para si mesma, recusando, assim, a dupla viuvez a que a relega a narrativa de Rosa. Processo similar de reinvenção do destino feminino ocorre com a retomada da novela “A hora e vez de Augusto Matraga”, no conto “Sariema”, de Rinaldo de Fernandes, onde a narração também é conduzida pelo ponto de vista e pela voz da mulher, a ex-prostituta e personagem secundária da narrativa matriz, que agora como sujeito da enunciação assume o proscênio, inverte a sua trajetória e assume uma nova identidade. Por meio de significativas inversões semânticas, que redimensionam os papéis sócias vividos pela personagem no conto de Guimarães Rosa, “Sariema” suplementa a versão original, inclusive pela feliz escolha do processo narrativo, que encampa a técnica de encenação dramática de Grande sertão:veredas e a memória épica dos narradores benjaminianos, substrato, de resto, de todo o universo ficcional do escritor de Cordisburgo. Outro exemplo de reescritura hibrida entre a contística e o romance do autor em pauta e o conto “A famigerada fama de Geraldo”, de Mário Chamie. O texto do idealizador do movimento da Poesia Práxis inspira-se no conto “Famigerado” de Primeiras histórias e num trocadilho verbal de Grande sertão:veredas para explorar as potencialidades poéticas da linguagem e a sonoridade plástica da palavra através do humor e do jogo verbal, que convertem em desonroso dito chistoso a má fama do valentão personagem de Rosa, agora transmudado em corno. Duas recriações de passagens do Grande sertão revelam igualmente a marca da irreverência . Os contos “Pactários”, de José Rezende Júnior e “Belzebu”, de Nelson de Oliveira. Ambos retomam o célebre e presumido pacto de Riobaldo com o diabo, narrado na voz de diferentes designações demoníacas. A primeira narrativa substitui o doutor letrado e silencioso da “interlocução reflexa” do romance por Deus. As dúvidas metafísicas de Riobaldo são agora assumidas por Lúcifer, o verdadeiro pactário, o que não descarta a possibilidade de se atribuir também tal condição ao Criador, numa evidente quebra de hierarquia entre o sobrenatural diabólico e o sobrenatural divino. A dramatização do conflito entre sagrado e profano, um dos temas de Grande sertão, é, em “Belzebu”, diferentemente reconfigurada. Aí, a personificação demoníaca, invocada por Riobaldo , oferece na “bandeja cosmopolita” do capitalismo tardio um outro produto ao pactário incauto: “um rastro de civilização no chão da barbárie”.
O desafio proposto por Rinaldo de Fernandes aos autores da coletânea não poderia ter sido mais instigante. Para além de reafirmar o que dispensa confirmação – a força da escritura rosiana – atesta a qualidade da nossa produção literária contemporânea que o reescreve com talento e ousadia.
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1 comentários:

On 14 de junho de 2011 às 18:26 , sarah disse...

olá minha professora doutora predileta. sou Sarah, fui sua aluna de análise crítica de textos literários na UFPE no ano passado e me encantei com o curso. Estou fazendo pós em literatura brasileira e escolhi como tema a intertextualidade e a reescrita de DUELO por luzilá e Guimarães Rosa. Gostaria muito que a senhora me desse referências sobre o assunto, além do que foi lido na disciplina, se puder, claro!meu e-mail é sarah.bunita@hotmail.com. bjs e saudades de nossos encontros