Author: Sônia Ramalho de Farias
•16:37


A editora Bagaço lança Cartas de Veneza (2008), segundo livro de contos de César Garcia, que estréia no gênero em 2005 com o livro Pacto. A presente coletânea, composta de treze narrativas, revela um jovem contista em processo, buscando sintonizar-se com seu métier.
A escritura se distingue por um laborioso trabalho de construção formal, que, se em alguns momentos, ainda não se mostra em sua plenitude, em outros, atinge um expressivo nível de qualidade, a exemplo do conto de abertura, que empresta seu título à obra. Uma das características mais significativas desse conto, retomada como elemento recorrente em outras histórias do livro, é a explicitação de seu próprio processo ficcional, assinalando um mecanismo apontado por Iser[1] como marca da moderna literatura: o desnudamento de sua ficcionalidade. Desnudamento realizável através de uma das peculiaridades do ato de fingir, que engendra toda ficção: o como se. No homônimo “Cartas de Veneza” tal processo se realiza pelo uso peculiar da mise en abîme, recurso que propicia à narradora-protagonista (uma professora) forjar a ilusão literária e, ao mesmo tempo, desvendar o fingimento da ficção. O encaixe narrativo se constrói pela imbricação na história encaixante de uma segunda história: aquela que está sendo escrita por um outro personagem, um romancista e também professor. Ao confidenciar à narradora que o casal protagonista de seu romance encontra-se em Veneza, coincidentemente uma das cidades escolhidas por ela para sua viagem de férias pela Europa com o marido, numa segunda lua-de-mel, o escritor fornece-lhe o motivo para o acionamento do imaginário. Por meio deste mecanismo a narradora faz-se co-autora e passa a repetir a “realidade vivida”, imprimindo-lhe a marca do ficcional[2]. Identifica um romântico e idealizado casal em Veneza – “duas figuras saídas de uma tela de cinema” como se fossem os protagonistas do romance do seu colega. Acompanha o trajeto dos dois pelas ruas, restaurantes, museus e galerias de arte da cidade. Registra suas preferências artísticas, perfis, falas e sentimentos. Envia todo o material documentado em cartas e fotos ao escritor brasileiro, no intuito de “ajudá-lo a escrever o romance”. Ironicamente, o desfecho do conto desnuda o jogo ficcional. Ou melhor, reatualiza, nas palavras de Iser, “o fingir que se dá a conhecer pelo desnudamento”. O colega escritor pretere a co-autoria que lhe é oferecida para priorizar uma outra história: a vivenciada em segundo plano pela própria protagonista. Uma história não de afinidades eletivas como a do casal de Veneza, mas de desencontros e incompatibilidades, obliquamente revelada pelo escritor que, lançando mão de uma espécie de mise en abîme prospectiva[3], antecipa para o leitor e para a própria narradora-protagonista, no livro agora já concluído e no prelo, o final da relação amorosa em crise: “o livro termina com a separação” (Garcia, 2008, p. 24).
Esse mecanismo de duplicação especular é retomado, por analogia e, sobretudo, por dessemelhança, através de vários artifícios narrativos metaficcionais e intertextuais. Dá-se ênfase, para além dos temas recortados nos vários contos (a morte, o fantasma edipiano, a solidão, a questão da identidade, os encontros e desencontros amorosos, a submissão profissional, o ciúme, as relações familiares, a infidelidade, a criação artística), ao processo que torna possível tematizá-los. Vale ressaltar ainda nesse sentido o conto “A imprudência de meus país”, que revisita paradoxalmente o mito de Édipo, não pela concretização da profecia da esfinge, mas pela recorrência à própria profecia que, no entanto, é negada no final. Vaticinada por um cego contador de histórias ao narrador-protagonista, quando ele tinha dez anos de idade, durante anos tal profecia paira na sua vida como um fantasma. “Disse-me que eu mataria meu pai e me casaria com minha mãe” (Garcia, 2008, p.104). Ao contrário do personagem mítico-trágico que não tem como evitá-la, no conto em pauta o protagonista, significativamente denominado Edinho, passa a driblar as “imprudências” dos pais (situações variadas que podem “casualmente” levar ao incesto e ao assassinato paterno). A tessitura narrativa se constrói nesse ambíguo processo de driblagem do destino. Mecanismo que oculta e ao mesmo tempo revela o desejo pela figura materna e a hostilidade para com o progenitor. A mescla de ódio e identificação ao pai é tema, aliás, do conto subseqüente, “No velório”, todo construído pelo diálogo shakespeareano com o fantasma do pai morto, numa perspectiva narrativa efetuada pelo “modo dramático”, e onde a alusão ao nome do dramaturgo Nelson Rodrigues, não é gratuita. A mesma temática ressurge com variações no conto “A queda do objeto”, cuja descoberta da infidelidade paterna, após sua morte (revelação mediada pelas páginas de um volume de O capital, de Marx, entre as quais se encontra o bilhete confessional do pai), desmistifica a imagem de homem honrado e exemplar mantida no âmbito familiar e social, provocando o ressentimento e desajuste da filha adolescente.
Se o clímax que antecede o desfecho de “A imprudência de meus pais” desmente o “oráculo” pelo inusitado: a morte súbita dos pais num acidente de trânsito, provocando uma sensação de alívio no protagonista, ele também explicita, de forma análoga ao final inesperado de “Cartas de Veneza”, o processo mimético acionado pelo texto. A mímesis nos contos de César realiza-se (como se vem aqui assinalando) não apenas via similitude, mas principalmente pela introdução da diversidade, instauradora da ruptura, caracterizando-se, portanto, como uma “oficina de imprevistas correspondências”[4].
Não é à-toa que os processos apontados - o encaixe narrativo, a intertextualidade, os jogos especulares desdobráveis nos semas de semelhança e diferenças (com predominância do segundo vetor), as duplicidades narrativas e imagéticas - medeiem, com maior ou menor intensidade, grande parte da fabulação dos contos da coletânea. As histórias são, pois, intermediadas por diversas formas de representação ficcional e diferentes modalidades discursivas: filmes, literatura, obras de arte, dança, música, que se imbricam suplementarmente. Pode ser apontado ainda como exemplo desse recurso o conto “Garrafas, pipas e internet”, cuja iniciação do personagem Bobô (uma espécie de Robson Crusoé urbano) com o mundo é mediada pela literatura e posteriormente pela internet. Destaca-se também “A voz de Inês”, que registra a fixação do escultor à sua obra inconclusa, a partir da qual passa a conduzir suas ações e filtrar o mundo E, por último, “Feliz natal, Berna. Feliz natal Berna”, em que a relação amorosa do casal de “duplos”, Bernardo e Bernadete, é pontilhada pela música de Jobim e pelos poemas de Florbela Espanca, para citarmos apenas estes.
Ancorada em tais mecanismos ficcionais a obra articula-se à realidade social do mundo por ela selecionada e focaliza, através dos temas postos em relevo, as fraturas do sujeito na contemporaneidade e suas “representações ‘irreais’”[5]. Recorta, assim, os pequenos e grandes dramas da classe média urbana brasileira (é este o contexto explicitamente tematizado na maioria dos contos), dando-lhes uma outra configuração. Essa articulação possibilita melhor compreender o estatuto da mímesis em nossos dias não como “imitatio”, reflexo do real, nem como um mecanismo que presssupõe um divórcio entre arte e mundo, mas como uma forma específica de representação da sociedade, conforme as reflexões de Costa Lima[6]. Ao acionar, às vezes ainda canhestra e timidamente, no seu segundo livro, esse procedimento mimético, César Garcia desponta como um nome promissor da nossa contística contemporânea.

*Professora de Literatura Brasileira e Teoria da Literatura do Departamento de Letras e do Programa de Pós-graduação em Letras da UFPE.
[1] ISER, Wolfgang. Os atos de fingir ou o que é fictício no texto ficcional In: LIMA, Luiz Costa. Teoria da literatura em suas fontes. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, v.2, p.955-987.
[2] Segundo Iser (idem, ibidem, p. 958). a marca própria do ato de fingir, característica do ficcional, é “provocar a repetição no texto da realidade vivencial, por esta repetição atribuindo uma configuração ao imaginário, pela qual a realidade repetida se transforma em signo e o imaginário em efeito do que é assim referido”. Obviamente aqui a realidade vivida pela protagonista é já ela mesma um produto ficcional, o que acentua o jogo de fingimento no processo de encaixe da obra dentro da obra posto em prática pelo conto.
[3] A propósito da classificação das várias modalidades de mise en abîme,ver DÄLLENBACH, Lucien, Intertexto e autotexto In: JENNY, Laurent et al. Intertextualidades. Coimbra: Almedina,1979, p.51-76. (Poétique, 27).
[4] LIMA, Luiz Costa. Mímesis: desafio ao pensamento. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, p. 289.
[5] Idem; ibidem, p. 156.
[6] LIMA, Luiz Costa. Mímesis e modernidade: formas da sombra. Rio de janeiro: Graal, 1980, p .67-80.
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