Author: Sônia Ramalho de Farias
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A construção das origens no discurso memoralista de Cyro dos Anjos: um exercício narcísico de classe.

O processo mnemônico em a menina do sobrado: as metáforas da origem

A tessitura narrativa d’A menina do sobrado (1979), livro de memórias de Cyro dos Anjos[1], lança mão de um curioso jogo imagético para descrever o processo produtivo da memória: a técnica do pentimento, tomada de empréstimo à pintura, recurso ao qual se articulam, ao longo do tecido textual, outros processos metafóricos.
Nas artes plásticas, o pentimento caracteriza-se pela sobreposição de uma nova pintura à original, de modo que, desgastada a camada de tinta da superfície, pode-se entrever na tela a pintura anterior, através da que lhe fora superposta. O procedimento é assim descrito por Lillian Hellman, em nota introdutória a seu texto de memórias, significativamente intitulado Pentimento; um livro de retratos:

“À medida que o tempo passa, a tinta velha em uma tela muitas vezes se torna transparente. Quando isso acontece, é possível ver, em alguns quadros, as linhas originais [...]. Isso se chama pentimento, porque o pintor se arrependeu, mudou de idéia. Talvez se pudesse dizer que a antiga concepção, substituída por uma imagem ulterior, é uma forma de ver, e ver de novo, mais tarde (Hellman, 1980).”

À semelhança da escritora norte-americana, o narrador d’A menina do sobrado visa remover as camadas superpostas ao seu quadro metafórico para nele recuperar a pintura primitiva. Busca, assim, entrever, através da tela/escritura, os contornos de antigas imagens, subjacentes às pinceladas de tinta que recobrem, no presente da enunciação, a superfície do quadro. Neste sentido, o discurso mnemônico cyriano atualiza, ao lado da metáfora pictórica, uma série de outras metáforas – a arqueológica, a do garimpo (imagens que talvez possam ser tomadas como metáforas do arcaico, das raízes, da profundidade). A função de todas elas é a mesma: mostrar o que está oculto. Fazer emergir, trazer à tona, iluminar as lembranças do passado, encobertas pelo painel do tempo. Nesse processo de “afastar as brumas”, explorar os “filões ocultos”, “vislumbrar civilizações superpostas sob milênios” (Anjos, 1979, p. 35-217), evidencia-se logo o desejo de ver claramente, de desconstruir/ reconstruir as marcas de um passado remoto que apenas fragmentariamente se deixa visualizar. A passagem abaixo transcrita ajuda a esclarecer como o autor vivencia o processo:

“A memória é manhosa, tenho de negacear. Primeiro, reproduzo o painel, assim como me vem à mente; depois, investigo pormenores, procuro restituir a pintura primitiva, removendo as finas pinceladas com que, sobre ela, o Tempo compôs outros quadros. Cenas fugazes, que antes haviam cintilado apenas [...] desdobram-se, então, em perspectivas mais amplas, e mundos, que pareciam para sempre perdidos, vão, aos poucos, emergindo à superfície da lembrança. Assim, debaixo de certos segmentos do painel [...] representações anteriores podem vir à luz, e imagens sem data, esculpidas numa camada arcaica, ilocável no Tempo, soem aflorar à lembrança (Anjos, 1979, p. 13).”

A explicitação do ato produtivo da memória pelo narrador, via técnica do pentimento e demais metáforas, possibilita uma leitura do processo menemônico à luz da teoria freudiana. Para Freud, reconstituir o passado não é simplesmente resgatar um referente que teria permanecido intacto à espera de ser evocado. Ao contrário, seu conceito de traço mnésico, enquanto tópica inscrita em sistemas que se relacionam a outros traços, através de diversificados procedimentos de associação (simultaneidade, causalidade), assinala a complexidade da memória e seu grau de resistência aos sistemas consciente, pré-consciente. Conforme explica Laplanche e Pontalis (1975, verbete traço mnésico, p. 666): “[Freud] compara a organização da memória a arquivos complexos onde as recordações se arrumam segundo diversos modos de classificação: ordem cronológica, ligação em cadeias associativas, grau de acessibilidade `consciência”.
Compreender o processo organizacional da memória, tal como o concebe Freud, ajuda a entender porque na tecelagem narrativa d’A menina do sobrado a evocação do passado não se oferece ao narrador plenamente. Ao contrário, o processo mnemônico ocorre – via recurso metafórico – sob forma de produção, de transcrição. Se, como quer Sarah Kofman (1976, p. 96), a obra de arte constitui fantasmaticamente o objeto recordado, a memória é sempre imaginação. A origem buscada é, pois, ela também, uma construção imaginária.
As metáforas da pintura, do garimpo e da arqueologia, por meio das quais a atividade mnemônica se explicita no texto, funcionam como forma de afastar e recuperar, num outro espaço simbólico, a origem perdida. Função análoga adquire na narrativa memoralista de Cyro dos Anjos um outro campo metafórico: o da luz e da sombra, acionado pelo narrador para falar da possibilidade/ impossibilidade de acesso às origens:

“PROTEGIDOS PELA BRUMA [sic], os dias da infância e da adolescência não se rendem às primeiras investidas nossas, ou, antes, nuca se rendem, mostram-se de relance, numa luz cujo rasto logo se desfaz, [...]. Nos momentos extraordinários em que esses mundos remotos se deixam entrever, eu os investigo até onde me guia o instantâneo lume. Quando me fogem, não desespero: vou deslocando a câmara, vou tomando vistas em diferentes posições (Anjos, 1979, p. 35).”

O processo de leitura/ escritura das experiências vividas se faz, portanto, pelo agenciamento e entrechoque de duas forças ambivalentemente opostas, mobilizadas pela busca de sentido, pelo desejo de interpretar e dar significado, no espaço simbólico da palavra escrita, àquilo que, de outro modo, não se pode enxergar. Tem-se, assim, de um lado, determinando a fragmentação das lembranças. O passado tanto se erige num “nítido clarão de luz”, como se entremostra no lucro-fusco crepuscular”, a que se seguem “intervalos de obscuridade”, em que nada se pode divisar. Do outro lado, o esforço do narrador para romper a resistência do inconsciente, pôr a descoberto uma “verdade” que subjaz oculta nos subterrâneos da memória.


A imagética da luz e da sombra: um cotejo com o Amanuense Belmiro


A imagética da luz e da sombra, acionada no processo de construção das origens no texto memorialista de Cyro dos Anjos, ganha novos contornos quando lida em cotejo com sua produção ficcional. Especificamente com O amanuense Belmiro (1936), livro de estréia do autor. Se nas memórias, o narrador procura afastar as sombras que envolvem os fatos narrados, tentando guiar-se pelo lume da razão em busca de uma realidade que presume mais “objetiva e universal” do que sua mera “realidade poética” (Anjos, 1979, p. 35); na obra ficcional, no entanto, o narrador desenvolve movimento oposto. Nela, o desejo de ver claramente é substituído – como já assinalou Roberto Schwarz – pela cegueira advinda da reposição do véu sobre a face das coisas. Ao invés de emergir a claridade, deve-se diminuir a luz para que possa surgir a sombra geradora dos fantasmas interiores. Ao predomínio, portanto, da reação iluminadora, impõe-se à renúncia “aos rumos da inteligência” o culto à sensibilidade propiciadora das sombras:

“Há muito que ando em estado de entrega. Entregar-se a gente às puras e melhores emoções, renunciando aos rumos da inteligência e viver simplesmente pela sensibilidade – descendo de novo, cautelosamente, à margem do caminho, o véu que cobre a face real das coisas e que foi, aqui e ali, descerrado por mão imprudente – parece-me a única estrada possível. Onde houver claridade, converta-se em fraca luz de crepúsculo, para que as coisas se tornem indefinidas e possamos gerar nossos fantasmas. Seria uma fórmula para nos conciliarmos com o mundo (Anjos, 1975, p. 21 – grifo nosso).”

Analisando a passagem acima transcrita, Roberto Schwarz chama a atenção para a significação ambígua da sensibilidade belmiriana, assinalando sua posição “cambiante entre vindicação e conformismo”. Embora longo, o excerto abaixo possibilita acompanhar o raciocínio do ensaísta:

“‘Estado de entrega’ indica falência, mas é triunfo, pois a queda, ascensional, leva ‘às puras e melhores emoções’. Assim também a renúncia aos ‘rumos da inteligência’, que poderia parecer fracasso, é acesso ao positivo, à região mais autêntica da sensibilidade simples. Embora o itinerário seja estranho – a verdade através do cansaço – propõe um princípio de autenticidade que resta examinar. Surpreendentemente, não tem compromisso com a verdade; manda repor o véu sobre a face real das coisas, que por imprudência haviam sido expostas. Governar-se pela sensibilidade, portanto, é ligar-se à aparência tradicional, cuja ruptura é imprudente e não à verdade. A alma sensível, que por vezes é diferença, é penhor, aqui, de conformismo (Schwarz, 1978, p. 16 – grifos do autor).”

A inversão do procedimento por parte do narrador d’A menina do sobrado não significa, todavia, uma oposição radical entre sua perspectiva e a do protagonista Belmiro. Ou seja, não se pode concluir que o narrador das memórias se ache isento de um compromisso com a aparência tradicional e com a visão conformista assinalada por Schwarz a propósito do amanuense. Ao contrário, formula-se aqui a hipótese – a ser tomada mais adiante – de que, a despeito mesmo da atitude que os distingue, a cegueira do personagem Belmiro é, até certo ponto, informada pelo conflito do próprio escritor mineiro diante do processo histórico.
Vale lembrar que os dois livros tematizam – a exemplo da obra poética de Carlos Drummond de Andrade, cujo registro mais significado nesse sentido encontra-se nos versos de “Confidência do itabirano” – a decadência da oligarquia rural mineira e o desvio da linhagem paterna por parte do intelectual brasileiro. Como herdeiros daquela ordem social e familiar em extinção, ocupando o cargo de funcionário e exercendo o ofício de escritor, ambos os narradores oscilam entre dois mundos. Dessa situação ambígua e escorregadia “extraem a matéria prima de que nutrem suas veleidades literárias”, conforme acentua Sérgio Miceli (1979, p. 93), a propósito das características sociais dos romancistas e de alguns personagens-chaves de romances da década de trinta. A partir deste contexto, compreende-se melhor a inversão metafórica do processo narrativo d’A menina do sobrado face ao do amanuense Belmiro. Tal inversão não significa uma saída para o impasse dramatizado ficcionalmente. Antes o confirma, pois, entre a intenção de ver claramente, a posteriori, e o poder de ver de fato, media toda a situação social em que se insere o narrador das memórias. E o desejo de afastar as brumas deve ser antes entendido como um “modelo consciente” (cf. Lima, 1973, p. 288-289), cuja prática necessita ser desconstruída para que se possam captar nas malhas do texto as lacunas inconscientes, subjacentes às intenções racionalizadoras do narrador. É o que se procura agora fazer analisando-se as interpretações psicológicas do texto.

As interpretações psicológicas: um compromisso com a tradição


Na tarefa reconstrutora do passado em A menina do sobrado, as imagens evocadas são repensadas a partir do conjunto de representações que povoam a consciência atual do narrador. O texto vai, pois, sendo regenciado por uma consciência organizadora que se coloca como “filtro de transparência”. Visa, assim, preencher os vazios, sanar as lacunas, em busca de uma legibilidade para aquilo que, de outro modo, poderia perder-se por opacidade. Neste sentido, a linguagem narrativa submete o relato mnemônico a uma ordenação coerente e, através de retificações e acréscimos, procura assegurar um sentido lógico e verossímil para o que antes parecia desconexo e inteligível.
Não é por acaso, portanto, que a característica fundamental que constitui o tecido narrativo do livro seja justamente a interpretação psicológica. Pela recorrência aos mais variados textos e autores de diversa procedência, o narrador estabelece uma exaustiva rede de comentários, explicações, racionalizações e interpretações. Assim, após uma primeira leitura da obra, a sensação que fica é de que nada resta a dizer. Tudo parece ter sido dito, comentado, explicado e analisado pelo narrador. Arvorando-se em intérprete do seu próprio texto, o narrador fala demais: espraia-se ao longo da narrativa em redundantes comentários, explicações e ornamentações psicológicas sobre suas atitudes, a dos outros personagens, os fatos, o procedimento técnico utilizado, os temas, as situações econômicas e sociais dramatizadas na narrativa. Tudo entremeado de citações e referências a um texto pré-existente que lhe serve de suporte[2].
Dessa forma, o narrador está sempre a fornecer constantes significações suplementares[3] à matéria versada, evidenciando um nítido desejo de resguardar seu texto de possíveis ambigüidades interpretativas, o que significa de certa forma impedir que a tarefa do leitor desconstrua o significado latente que todo mimético pressupõe, já que fornece ele próprio a interpretação para os fatos narrados.
Postulando-se como mestre da leitura que conduz e dirige sua própria narrativa, afigurando-se como leitor de seu próprio texto, o narrador, no entanto, é antes de tudo leitor do texto alheio. E, se por um lado, as interpretações psicológicas revelam a presença de um narrador “intruso” e autoritário, que tenta condicionar à sua ótica o processo da leitura; por outro lado, seu próprio processo narrativo já se acha determinado pela referência ao discurso do outro, pela fidelidade a um texto tradicional que serve de paradigma à matéria narrada. Por este segundo procedimento, justificam-se suas constantes recorrências à literatura de viagem, aos textos historiográficos de Gardner e Saint Hilaire, as consultas às coleções da Sentinela de Santana e do Clarim e, principalmente, às Efemérides Santanenses, livro de Hermes Trimegisto. Através dessas leituras o narrador visa corrigir as imprecisões e os claros de sua memória, contrapondo as antigas percepções a uma visão posterior, por onde intenta uma reinterpretação analítica do material lembrado.
A crônica provinciana[4] e os textos de história constituem, pois, matéria de grande apreço. Curiosamente, seu interesse pela historiografia revela um apego às idéias sedimentadas, um desejo de recuperar uma história cristalizada em que avultem o culto dos grandes heróis, “a eloqüência de um episódio”, “o vigor de uma exclamação” (Anjos, 1979, p. 286). Num capítulo em que versa sobre o assunto, cotejando os dois livros de história de João Ribeiro, o de história do Brasil e o de história universal, o narrador pretere a exaustiva prospecção do primeiro pela descrição amena do segundo, na qual – conforme afirma textualmente – o rigor do registro dos feitos e a minúcia das digressões eruditas são substituídos pelas “exigências mínimas de um epítome” pela “síntese feliz” dos “grandes gestos” e das “legendárias palavras” (Anjos, 1979, p. 286).
A fidelidade à história cristalizada e à retórica grandiloqüente é, conseqüentemente, isomorfa ao apego à ordem tradicional, ao culto à hierarquia, à preservação da ordem estratificada. Sintoma disso é a reduplicação ideológica que o narrador faz de dois textos do folclore popular, A cavalhada e A marujada, cuja representação constituía matéria de tradição arraigada em Santana. Calcados em matrizes das histórias medievais, ambos os textos tematizam o confronto entre dois personagens socialmente antagônicos, dramatizando a inversão da ordem e da hierarquia, para que, no final, elas sejam restabelecidas. N’A cavalhada o confronto se estabelece entre o rei cristão e o rei mouro, o qual tenta persuadir o primeiro, através de uma série de engodos, a entregar-lhe a mão da princesa cristã com quem deseja casar-se. O texto transforma um quadro culturalmente contraditório num ambiente de descrição mitológica, montado num modelo de oposições dicotômicas, onde são ressaltados a lealdade, o heroísmo e a fé do cristão, a perfídia e a dissimulação do pagão, o fascínio da donzela e a disputa renhida em torno da questão religiosa e de determinados padrões morais. Após uma situação de duelo, o desfecho se dá “harmoniosamente” pelo triunfo do bem sobre o mal: “[...] os Cristãos venciam, e o Mouro apaixonado, renunciando ao Profeta levava consigo a princesa, cumulada de bênçãos paternas” (Anjos, 1979, p. 105).
Situação análoga é reproduzida no segundo texto, sendo o conflito aí tematizado entre o grande sultão, patrão da marujada – cuja finalidade era louvar a Virgem do Rosário – e o contramestre infiel, que se rebela às suas ordens. A subversão da hierarquia é corroborada pela sublevação das forças da natureza, a borrasca do mar (sintoma do caos) correspondendo à refrega a bordo. Trava-se o combate, finalizando com a morte do patrão pelo contramestre, e sua posterior ressurreição, graças à atitude do fiel piloto que, fazendo descer a bandeira do divino Espírito Santo sobre o corpo inerte do patrão, lhe restitui a vida, restabelecendo a concórdia, assegurando a ordem e a hierarquia que haviam sido ameaçadas (cf. Anjos, 1979, p. 108-109).


A réplica do mito


Embora os dois textos acima comentados façam parte do universo de aventuras que mediatizavam as experiências vivenciais do narrador enquanto criança, a sua recuperação pelo relato das memórias não deixa de ser significativa. Denuncia as marcas da infância que determina o comportamento do narrador adulto. Perpassados por uma ideologia religiosa que tematiza, simultaneamente, a insubordinação e o acatamento à ordem do Pai celeste (os personagens vitoriosos em ambos os textos são lugar-tenente da ordem divina), tais narrativas funcionam como réplica da classe social dominante. Reduplicam, ainda, em nível intertextual, a oposição e a contradição do próprio narrador face à sua classe de origem e aos valores do clã paterno. Através delas, o texto de memórias de Cyro dos Anjos representa simbolicamente, de forma análoga à obra poética drummodiana – para se insistir aqui na aproximação com o poeta mineiro – a trajetória do narrador entre duas posturas ideológicas: a postura do “começo” e a postura da “origem”, expressões utilizadas por Silviano Santiago (1982, p. 31) a respeito da ambivalência do discurso poético de Carlos Drummond de Andrade face ao clã de Minas.
A primeira postura implica numa atitude adolescente de rebeldia, de negação da ordem paterna e familiar, enquanto transmissora da cultura e dos valores sociais do indivíduo. Ao contrário da narrativa arcaica descrita por Benjamin (cf. Benjamin, 1985), essa postura adotada pelo narrador cyriano descarta a figura do velho como transmissor de conselho que se traduz em sabedoria. É o que se pode ler no excerto transcrito, onde são enfatizados o conflito de gerações, a sublevação filial e a negação da experiência dos pais e da estrutura familiar, configurada como prisão:

“[...] a adolescência não nos deixa conviver com os pais, e menos ainda observa-los. A vida ferve lá fora, a casa oprime feito uma prisão, a gente mal sopita a rebeldia contra os que outrora davam ordens, proibiam coisas. Repentinamente se descobre que Mãe e Pai são velhos, nada sabem do mundo que veio depois deles. Sua experiência já não é válida, suas idéias são ingênuas, suas prevenções descabidas (Anjos, 1979, p. 29).”

A segunda postura é marcada pela vontade do indivíduo adulto de preservar esses valores de “se inscrever numa ordem sócio-cultural que o ultrapasse e em que os valores individuais percam sua razão de ser, pois são indícios de mera e passageira insubordinação ou rebeldia” (Santiago, 1982, p. 32)[5]. Leia-se a propósito uma outra passagem do texto em que o discurso do narrador, agora conciliado e identificado à ordem paterna, funciona como contraponto ao discurso anterior:

“Ou porque eu já tivesse as responsabilidades de chefe de família ou porque a velhice o tornara precavido e tímido, ele [o Pai] já não me pregava sermões [...] Já isento dos temores da infância ou das suscetibilidades da juventude, eu chegava a ter nostalgia dessas reprimendas e as houvera provocado por simples ternura, não fosse o receio de que isso encobrisse uma ponta de irreverência ou desrespeito. Causava-me pena vê-lo, assim, quase timorato, apalpando, sondando, como todo velho, para não pôr em xeque a autoridade (Anjos, 1979, p. 33).”

Essa duplicidade de vínculo com as origens (cf. Sibony, 1991), o retorno ao passado vivido sob o duplo registro de negação e conciliação dos valores afetivos e socioculturais paternos, assinalada a postura ambígua do autor de Abdias (1945), caracterizando uma oscilação ideológica entre as duas ordens acima contrapostas: a da origem e a do começo.
A identificação com a ordem do patriarca implica, pois, o endosso aos valores da tradição oligárquica que passam a ser vistos como os únicos dignos de serem preservados. Essa característica marca a atitude nostálgica do narrador e justifica sua ambigüidade diante da história como fluxo e processo. Se, por um lado, essa ambivalência o faz divisar as transformações históricas na sua justa complexidade, por outro lado, o mantêm preso à crença nos valores do passado como verdade eterna. Pelo simples fato de terem sedimentado, transmitem a sensação do imutável, do complexo, do perfeito. Como se pode constatar no capítulo intitulado “No devir mineiro”. Nele, o narrador, através de uma consciência a posteriori, tenta corrigir a cegueira do adolescente diante do processo histórico, no contexto de transição da velha ordem oligárquica rural para a nova ordem urbana e burguesa. Assim, ao registrar as mudanças sub-repticiamente processadas na rígida estrutura oligárquica mineira, na década de vinte, o narrador acentua as transformações históricas como inevitáveis. Mas preserva, ao mesmo tempo, uma nostalgia em relação ao passado da província. Demonstra, pois, simultaneamente, reconhecer a importância da história no processo de modernização do país e não compreender seu necessário desenvolvimento:

“[...] Aquele mundo em franca ebulição parecia-me estável, imune a transformações, firmemente embutido na rocha das minas. Só mais tarde pude ver que, se ele não desmoronava fisicamente como Santana, sob ávidas picaretas, aos poucos se esfacelava, ou, mais exato, se diluía nos tempos novos, já comandantes do século. [...] De qualquer modo, o que hoje me flutua, nostálgico, no remoído e repensado, é aquele passo vagaroso dos cavalheiros de fraque pelas ruas ensombradas de magnólias em flor (Anjos, 1979, p. 236).”

A passagem transcrita dramatiza o choque de dois momentos históricos, o da modernização e o da tradição, detendo-se no segundo, isto é, recuperando uma ordem pretérita, que busca fixar intacta. O compromisso do texto memoralista com “a busca do tempo perdido” denota, por esse ângulo, um apego às ruínas rurais, entendidas como força viva que triunfa sobre o tempo. Encerra, pois, uma concepção mítica do passado como algo estático, idealizado, por onde se preserva o culto à ordem oligárquica. Assinale-se, ainda, neste sentido, a reação despertada no narrador já adulto à vista da fazenda das Quebradas, que na infância se lhe afigurava mais significativamente do que a Porteirinha, fazenda paterna, por ter-se preservado imune dos “eflúvio urbanos” com que esta última se beneficiara. Na contemplação de um mundo morto e em ruínas, o narrador vivencia, nas suas próprias palavras, “a sensação do infinito”, o “anelo de viver eternamente”, o “supremo bem”. O ressurgir “enfim [de] uma vida subjacente, abafada que o Tempo desintegrou, mas afinal triunfa sobre o Tempo” (Anjos, 1979, p. 154). A visão retrospectiva da fazenda decadente traduz, pois, um desejo de subtrair a temporalidade. Ou, no dizer de Lafetá, referindo-se ao pensamento de Tristão de Ataíde, no contexto da crítica do modernismo, uma “incompreensão do que vem a ser a luta entre o ‘velho’ e o ‘novo’ no interior das sociedades. Incapaz de distinguir entre o que é velho e morto e o que é novo e atuante dentro da tradição social, tende a tornar-se insensível ao movimento da história e a fixar-se numa ordem passada, que julga ter sido a maior aproximação a uma sociedade perfeita” (Lafetà, 1974, p. 77).
No texto aqui analisado, a fixação na ordem passada reitera o mesmo “sentimento de entrega”, já observado em O amanuense Belmiro. Numa passagem que lembra a dicção nostálgica do conto “A cadeirinha”, do também mineiro Affonso Arinos (cf. 1968, p. 66-69), constata-se a semantização desse sentimento, emergente da contemplação do antigo:

“Como identificar os ingredientes dessa fusão de vida, matéria e homem, que, numa velha marquesa desconjuntada, num teto carunhoso, ou num oitão a ruir, nos atinge em cheio, fazendo subitamente desmoronar-se o nosso orgulho, o nosso desejo de ação e, ao mesmo tempo, mergulhando-nos em voluptuoso sentimento de entrega? (Anjos, 1979, p. 151).”

Voltando ao que fora assinalado por Roberto Schwarz a respeito da carga semântica do estado de entrega em O amanuense Belmiro, pode-se agora visualizar mais de perto a cegueira do amanuense, e o fato de achar-se ela já informada, em parte, pelo conflito do próprio Cyro dos Anjos em relação ao processo histórico. Pois, aqui também, o sentimento de entrega perfaz o mesmo jogo ambíguo entre vindicação e conformismo. Se, por um lado, ele remete à paralisação da ação, ao desmoronamento do orgulho, que são índices de falência, por outro lado, conduz ao “êxtase”, ao “indefinível gozo”, à “estranha felicidade”, que deixa de ser estranha porque consiste precisamente na restauração idealizada dos valores senhoriais da velha ordem patriarcal.

“A última visita à tapera que, em época recuada fora a casa grande das Quebradas, revelou-me – suponho – a fórmula do patético imanente às velhas fazendas, ou melhor, a composição da mágica substância que elas segregam e que em nós produz o êxtase, a comunhão com as coisas. Para que proporcionasse o indefinível gozo, a estranha felicidade a que me referi, a fazenda deveria localizar-se numa várzea; ter não menos de cem anos de existência, havendo nela vivido consecutivas gerações [...]. Por último, além de outras instalações, impor-se-iam obviamente um engenho de moer cana, roda e fornos de fazer farinha e ainda uma gangorra (Anjos, 1979, p. 154-155).”

A passagem transcrita não deixa dúvidas: o narrador – e é nisto precisamente que consiste sua cegueira – vivencia o presente mediado pela visão mítica do passado cristalizado, cuja ilusão de harmonia tende a minimizar as noções dialéticas do conflito social. Pelo trabalho do mito, as possíveis configurações de antagonismo, representadas pelo choque entre o velho e o novo, pela antiga ordem oligárquica rural e a emergente ordem urbana e burguesa, são esvaziadas de sua real significação. As contradições da sociedade passam a ser neutralizadas, retiradas de seu contexto e depuradas de suas implicações históricas. Como nos afirma Barthes, na sua compreensão do mito:

“A função do mito é evacuar o real: literalmente o mito é um escoamento incessante, uma hemorragia ou, se prefer, uma evaporação; em suma uma ausência sensível. O mito não nega as coisas; a sua função é, pelo contrário, falar delas; simplesmente purifica-as, inocenta-as, fundamenta-as em natureza e eternidade, dá-lhes uma clareza, não de explicação, mas de constatação (Barthes, 1974, p. 163).”

Uma das maneiras através das quais esta depuração do “real” se atualiza, n’A menina do sobrado, é justamente pela noção do belo que fundamenta o pensamento metafísico do autor. A categoria de beleza não se confunde com o saber cambiante das coisas mutáveis,, sujeitas ao devir. Antes se declara platonicamente como um “reflexo” de uma essência imutável, a essência divina, cuja contemplação favorece, à semelhança do mito da parelha alada descrita por Platão em Fedro, a nostalgia do absoluto, subtraindo à alma contemplante a materialidade cambiante do mudo sensível:

“Com o tempo e por experiência própria aprendi que essa melancolia incausada, que nos rói de mansinho, não vem das coisas de fora, nem mesmo das de dentro. Brota simplesmente do existir, e quem sabe será pura nostalgia do mundo de essências a que a alma foi arrebatada para informar o frágil barro humano. Assim se explicaria o fato das estranhas coisas belas nos provocarem suspiros, e não alegres impulsos; refletem uma face do absoluto e dele nos fazem nostálgicos (Anjos, 1979, p. 34).”

A correspondência entre beleza e essência divina implica, pois, numa visão a-histórica que se caracteriza pela supressão da descontinuidade entre os fatos pretéritos e os atuais. O processo de significação das experiências vividas se formula, ainda, como um processo que o narrador busca explicitar pela mediação do conceito de memória involuntária tomado de empréstimo a Proust, e que lhe assegura a captação das percepções em estado puro, a recuperação estática do passado pela transcendência temporal. A analogia entre o processo da memória na Recherche e o processo mnemônico no livro de Cyro dos Anjos é estabelecida pelo próprio narrador, numa passagem do capítulo dezenove significativamente intitulado “A Thing Beauty”, onde recorre as páginas proustianas para registrar o mecanismo de evocação das lembranças do passado, a partir das sensações vividas posteriormente:

“[...] Na página de Proust, um ruído longo e estridente, semelhante à sirene dos iates de passeio, restituiu ao narrador não apenas a lembrança, mas a genuína vivência de Balbec, por antigo fim de tarde, com seus barcos, a brisa, o dique, as moças em flor. Na sala brasileira de Haia, a música schubertiana, de relance, me trouxe íntegro, intacto, o palco do municipalzinho da Rua Goiás [...]. Observo de passagem, que, ao fazer ressurgir essa noite de opereta, a peçazinha não me trouxe alegria nem trsiteza, mas um sentido singular que, noutra altura da Recherche, Proust, enfim, decifraria: a instantânea felicidade produzida pela captação do tempo em estado puro. Ataraxia, talvez – arrisco – e não propriamente felicidade (Anjos, 1979, p. 292 – grifo nosso).”

A retificação do termo felicidade por ataraxia bem diz da concepção mnemônica cyriana: sendo ataraxia uma quietude absoluta da alma, a captação do passado, implica numa imobilidade dos sentidos, num congelamento das sensações presentes, que assim possibilitariam o ressurgir “intacto” das lembranças. O “estado de ataraxia” é, pois, congruente ao “estado de entrega” que caracteriza tanto o narrador protagonista do texto ficcional, quanto o das memórias. Tal como a entrega, o sentimento de ataraxia revela-se também ambíguo. Contém aparentemente uma carga semântica negativa, já que subtrai a sensação de felicidade presente. Coverte-se, de fato, no entanto, em algo extremamente positivo, “infinito gozo”, que transcende as inquietações e vicissitudes temporais, remetendo à concepção essencialista de beleza, através da qual, como se viu, o eterno se atualiza. Assim, a suspensão da felicidade no presente se configura não como a suspensão do prazer. Afirma-se, ao invés, como uma libertação de um prazer maior, porque subtraído à temporalidade. Isto se torna bem evidente numa passagem das memórias quando o narrador, retomando às reflexões que o verso de Keats lhe suscitara, retifica a adaptação que anteriormente dele fizera, recorrendo mais uma vez a Proust. A citação extensa permite acompanhar o desdobramento das reflexões do autor:

“E aqui volto ao verso de Keats, que, na primeira parte destas memórias, me veio à meditação, quando me afloram à lembrança umas estações perdidas [...]. A thing of beauty is a joy for ever… Eu já não poria suspiro, onde Keats pôs alegria. Se uma coisa bela nunca se esgota e nos pode propiciar infinito gozo, não será porque traga alegria ou tristeza, mas porque, transcendendo o alegre e o triste, nos mergulhe no cosmo da Recherche, quando a coincidência de sensações do presente e do passado toma de assalto o Narrador. Do mesmo modo que o passado e o presente, fundindo-se por obra da memória involuntária, acorda em nós, pela duração de um relâmpago, um ser extratemporal que se nutre da essência das coisas e somente nestas encontrará as suas delícias – o belo também nos subtrai à temporalidade e, tal qual na experiência proustiana, nos liberta, por momentos, das inquietações atuais e das viscissitudes futuras. A beleza, fruição do Eterno, desconhece o triste e o alegre (Anjos, 1979, p. 292 – grifos nossos).”

As rápidas correlações intertextuais estabelecidas entre o romance da década de trinta e a obra memoralista da década de setenta, reafirmam o lastro comum que se vem perseguindo entre o personagem romanesco e o autor das memórias. Assinala-se em ambos a atitude de fruição e “cega” contemplação com que buscam – via estado de entrega ou sentimento de ataraxia – se subtrair à roda dos acontecimentos, às vicissitudes do tempo. Tal postura revela, conforme já foi aqui suficientemente enfatizado, o compromisso com o passado e uma fidelidade à tradição, a despeito mesmo da dubiedade que os caracteriza. Poder-se-ia, portanto, dizer para retomar as considerações que Sérgio Miceli (1979, p. 93)[6] estende a todo um grupo de romances dos anos trinta, que O amanuense Belmiro, condensa, ficcionalmente a trajetória ambígua de seu autor, realizando “negativamente” a experiência de vida do próprio Cyro, no contexto de crise marcado pela perda de hegemonia dos proprietários rurais no processo de modernização do país. É desta experiência traumática, responsável pela conversão do herdeiro rural em “fazendeiro do ar” (conforme a feliz expressão do poeta), que se nutre ficção e memória, como a atestar a fragilidade das fronteiras estanques entre discurso ficcional e discurso memoralista. É também essa experiência que traduz a dubiedade do intelectual brasileiro entre a condição de literário e de amanuense. É ela ainda que delimita o conflito do narrador das memórias entre sua classe de origem e a imagem identitária refletida no espelho, conforme representada no penúltimo capítulo do livro.


A imagem no espelho: entre o escritor e o burocrta


“O birô, o espelho”, penúltimo capítulo d’A menina do sobrado, sintetiza dramaticamente a trajetória existencial do narrador Cyro dos Anjos entre o mundo rural e o urbano. Funciona, portanto, como uma réplica do discurso do intelectual brasileiro da classe social dominante.
Erigido sob a metáfora do espelho, o texto abre um espaço crítico, que é também um exercício identitário, por onde se pode entrever as contradições e o impasse do escritor burocrata diante de sua classe de origem e das prerrogativas que lhe são oferecidas na cidade, após a decadência da classe oligárquica. Cabe frisar que a função do amanuense constitui uma “extensão do privilégio rural” no contexto urbano (Schwarz, 1978, p. 19).
Refletindo simbolicamente a situação social do escritor face à instituição burocrática, o diálogo com o espelho representa a clivagem do sujeito entre duas ordens antagônicas: a cooptação ao sistema, que se assinala pela inevitável submissão ao birô, semantizado no texto como uma personificação do mal, entidade diabólica, lugar-tenente da prisão e do suplício; e o desejo impossível de romper com essa ordem, em busca de um espaço libertário, compatível com as veleidades de escritor, independente, pois, do jugo do sistema. Prisão e rebeldia, origem e começo constituem, portanto, os dois pólos radicalmente opostos através dos quais se fragmenta a consciência reflexiva do narrador. Essa oposição é marcada ironicamente pela própria disposição dos elementos no espaço geográfico contextualmente representado. Tendo de um lado o Palácio e de outro a cadeia, o poder civil e o poder judiciário, o burocrata, filho de ex-fazendeiro e de ex-presidente da câmara não se situa em nenhum deles. Não se situa também em um outro espaço contíguo, o da praça da Liberdade, cujos apelos traduzidos na mensagem de rebeldia – semanticamente tematizada pelo símbolo das rosas – neutralizam-se pela impossibilidade de ação:

“COM EFEITO [sic.]. Vi-me algemado a um birô, um Birô que tinha partes com o diabo, e, quando lhe dava na telha, diabolicamente se deslocava no espaço, mudando o local do meu suplício, não o suplício. Da Secretaria, após divertir-se um pouco com a dança de titulares da Revolução, que, mal entravam, saíam, ele, o meu Torquemada, esgueirou-se por entre as rosas da praça que trazia o doce nome de Liberdade e levou-me para outra prisão, o Palácio. Pela janela me vinha, vertida em aroma, a mensagem das rosas: a vida era bela, valia a pena fugir. Eu suspirava, imponente. Como arrancar-me ao Birô, como quebrar as algemas? Um dia, após muitos e sofridos anos, o seu capricho fê-lo voar para o Rio e pousar num ministério, um casarão áspero, tão sinistro quanto o quartel-presídio que havia nas imediações. Aí não esquentou lugar. Ia libertar-me? Pobre de mim, pregava-me uma peça (Anjos, 1979, p. 379).”

Entre a imagem do monstro tentacular, metáfora da cooptação ao sistema, e o aroma das rosas, metáfora da liberdade, situa-se a figura do boi-de-canga, metáfora do burocrata, enquanto vítima e instrumento do sistema. Embora o conflito esteja sedimentado na própria imagística do texto, as racionalizações engendradas pelo narrador funcionam como álibis diluidores deste conflito, oscilando o texto entre a ótica crítica do escritor e a visão conformista do burocrata. Aquele aponta e exacerba as contradições, este as mininmiza, através de racionalizações conscientes, que visam descartar a dimensão daquilo que não foi possível realizar.
O diálogo com o espelho é, pois, um diálogo ambivalente de autodepreciação e de auto-indulgência, de exacerbação do dilema do intelectual face à burocracia e de racionalizações mitigadoras deste dilema, de consciência reivindicativa e de conformismo complacente, de rebeldia e de resignação, de desejo de agir e de suspiro de impotência. A ambigüidade do discurso engendra, assim, a condenação do burocrata em nome do escritor e a crítica ao escritor em nome do burocrata. Conseqüentemente, predomina o tom derrotista e levemente irônico que não disfarça um certo compromisso do derrotado com a própria derrota. A atitude de auto-complacência para com o funcionário termina por confundir trabalho burocrático com utilidade pública, literatura com fuga do real:

“Agora, no fim da viagem, devo lamentar o tempo furtado ao escritor por essa atividade dispersiva, quase sempre vã, que fazia descer sobre os meus dias uma nuvem gris, de frustração e melancolia? Eu era um boi de canga, paciente e aferrado, mas às vezes tinha ímpetos de empinar a cabeça, sacudir o jugo [...]. Dizia-me que, aceitando, resignado, tal imposição das circunstâncias, eu me atraiçoava, como clérigo, eu me prostituía, como intelectual. Assomos de presunção e vaidade, que logo cediam ante uma objeção generosa que eu próprio forjava: no meu trabalho de galé, seria porventura menos inútil à comunidade do que cavalgando a fantasia, fugindo ao real, construindo imaginários mundos”. Investigo. Pondero. Não há o que lamentar (Anjos, 1979, p. 380).”

Ao assinalar os percalços da classe social dominante a que pertence o narrador, ao tematizar o processo de decadência e de desclassificação social do homem rural no meio urbano, o texto de memórias de Cyro dos Anjos reconstrói dramaticamente, sob o alimento da memória familiar tecida pelo narrador, o espaço ocupado pela formação social brasileira. Entre a extinção da velha estrutura rural e a constituição da média burguesia citadina, instala-se a tensão interna da narrativa. Tensão que o narrador procura iluminar através de sua face refletida no espelho. Mas, porque permanece com os olhos voltados para trás, na tentativa de recuperar miticamente o tempo perdido, porque não pode ultrapassar a sua própria classe de origem, nem tampouco nela inteiramente se situar, o discurso do escritor mineiro vivencia, no espaço movediço da escritura, o impasse do intelectual em toda a sua dimensão social. Significativamente, a imagem se dilui, o espelho perde o aço, a identidade do escritor se fragmenta. A imagem final do livro, a imagem do Quixotinho de madeira pousada sobre a mesa, a contemplar, junto com uma coruja de vidro, o trabalho da escritura, pode ser lida como uma representação simbólica dessa fragmentação identitária. Principalmente se for considerado que, ao longo do texto, a figura do pai é constantemente evocada pelo epíteto de Quixote. Nessa relação especular fragmentada, o texto memoralista se converte num exercício narcisíco de classe que se debruça tautologicamente sobre si mesma.

NOTAS:


[1] O volume reúne as duas partes das memórias do autor. A primeira, “Santana do Rio Verde”, publicada em 1963 com o título Explorações no tempo; memórias do real e do imaginário (ampliação da edição anterior de 1952, classificada na época como crônica), e a segunda, “Mocidade amores”, até então inédita.

[2] Exemplar neste sentido é o capítulo “Amava-se o amor” (Anjos, 1979, p. 260), em que esse procedimento se intensifica pela contraposição de diferentes teorias e tratados sobre o tema e pelas freqüentes “intrusões” explicativas do narrador.

[3] Sobre suplemento e lógica do suplemento, cf. Derrida, 1972, p. 124-125 e Santiago, 1976, p. 88-91.[

4] A respeito da crônica provinciana no contexto mineiro ver também “Jornais velhos”, de Carlos Drummond de Andrade.

[5] O termo réplica no seu duplo sentido de cópia e contestação é empregado por Silviano Santiago (1982, p. 28) para caracterizar a ambigüidade do discurso ficcional modernista face ao discurso da classe dominante.

[6] Segundo Sérgio Miceli (1979, p. 93), os protagonistas dos romances de trinta, que tematizam a decadência oligárquica, “realizam as diversas potencialidades objetivas das quais seus próprios autores conseguem se livrar”. Situam-se, portanto, “negativamente” em relação a eles.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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SIBONY, Daniel. Entre-deux, l’origine em partage. Paris: Seuil, 1991.
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