Author: Sônia Ramalho de Farias
•01:18
Em 05 de outubro de 1897 termina definitivamente a Guerra de Canudos, designação através da qual entra para a história o conflito armado entre os adeptos messiânicos de Antônio Conselheiro, nos sertões da Bahia, e o Exército republicano nacional, após violento combate que durou quase um ano e levou quatro expedições ao interior do estado baiano para combater os conselheiristas.Na condição de correspondente do Jornal O Estado de São Paulo, Euclides da Cunha assiste aos últimos episódios desse acontecimento histórico como testemunha ocular dos fatos. Cinco anos depois, em 1902, publica Os sertões, obra que o iria consagrar como o maior intérprete dessa guerra e dessa “gente indomável”, expressão com que exprime – em carta de 26 de setembro de 1897, enviada ao jornal do qual é redator – sua admiração pela resistência dos sertanejos nos últimos dias do combate (Galvão, 1976, p. 62).Os sertões euclidianos: um paradigma na revisitação de CanudosLivro complexo e polêmico, Os sertões suscitou ao longo dos anos, por parte de comentaristas e críticos, reações radicalmente díspares, de recusa e louvor, de amor e ódio. Reações essas estendidas ao próprio autor, conforme acentua Walnice Nogueira Galvão (1981:62), em ensaio onde faz um balanço crítico dos oitenta anos de publicação da obra.Não obstante tais reações, a obra mestra de Euclides funciona indubitavelmente – não apenas no âmbito da ficção, mas na de outros gêneros e diversificadas modalidades discursivas – como paradigma para a revisitação do tema. É a partir desse texto matriz, considerado por um escritor brasileiro como O “gibão de couro de nossa nacionalidade” (Dantas, 1982, p. 160) que ficcionistas, dramaturgos, poetas, historiadores, sociólogos, entre outros intelectuais, têm retomado o episódio de Canudos sob os mais variados ângulos, recortes e perspectivas. A própria literatura de cordel não se mantém imune às suas marcas. Ao contrário, mediada pelo imaginário popular do sertão, a retórica euclidiana chega até aos folhetos de feira e à voz do poeta popular, configurando, de forma unívoca ou ambígua, a imagética do messias de Canudos e sua “Tróia de taipa”, imagem através da qual Euclides designa n’Os sertões, entre outras que remontam à Antiguidade Clássica e à Idade Média, o arraial de Antônio Conselheiro.No contexto da literatura brasileira erudita, os anos 50 marcam o surgimento de dois romances: João Abade (1958), de João Felício dos Santos, e Capitão Jagunço (1959), de Paulo Dantas, que buscam revisitar a luta travada entre os beatos do Belo Monte de Canudos e as forças armadas brasileiras, deslocando o ângulo de abordagem da perspectiva culta e erudita, característica do narrador d’Os sertões, para uma perspectiva que incide sobre um ângulo interno e popular: o da gente de Canudos, no caso de João Abade; e o de um jagunço morador nos arredores do arraial do Conselheiro, e ex-guia das tropas republicanas, no caso do romance de Paulo Dantas, o Capitão Jagunço do título, cujo relato cindido e ambíguo dá-se a partir deste duplo lugar de onde narra, o lugar dos valores republicanos e o lugar dos valores sertanejos, o do homem litorâneo e do homem do sertão, o do exército e da gente do Conselheiro, conforme já apontou um ensaísta da obra (Fonseca, 1990, p. 68-69). Mesmo considerando-se a clivagem do narrador de Paulo Dantas, em ambos os romances os acontecimentos deixam de ser vistos de um foco urbano e letrado, para ser filtrados pelo prisma do sertanejo e pelo imaginário rural. Tal mudança de ponto de vista não descarta, no entanto, a recorrência ao livro de Euclides como um dos subsídios mais importantes para a reconstrução da matéria romanesca e como um dos interlocutores privilegiados para os eventos narrados.Posteriormente a João Abade e Capitão Jagunço, dois outros romances da nossa literatura revisitam o tema de Canudos, estabelecendo um diálogo com a obra euclidiana, de forma e ângulos diferentes e contrastivos entre si. São eles: O romance d’A Pedra do Reino e o príncipe do sangue do vai-e-volta (1971), de Ariano Suassuna e a Casca da Serpente (1989), de J.J. Veiga. O primeiro recria os fatos ligados ao arraial de Belo Monte não como tema central, mas como episódio importante articulado à temática principal do livro. A saber, o projeto messiânico do narrador Dom Pedro Diniz Ferreira-Quaderna, cuja voz em primeira pessoa apresenta-se comprometida com os fatos narrados. O segundo empreende uma “reedição crítica” de Canudos sob uma perspectiva revisionista, filtrada pela ótica de um narrador anônimo em terceira pessoa, distanciado dos eventos romanescos. Trata-se, na verdade, da construção de dois projetos utópicos: a restauração da utopia sebastianista do V Império, no livro de Ariano, e a utopia anarquista de uma sociedade sem governo, em nome da qual se dá, no romance de J. Veiga, a gradual transformação do personagem central: de Antônio Conselheiro a tio Antônio. Ou seja, de messias e líder teocrata conservador, voltado para o mundo endógeno do sertão, a liberal democrata, aberto às inovações da ciência e ao progresso da realidade exógena. É ainda em nome dessa utopia que se torna possível a construção de uma Nova Canudos, a Concorrência de Itatimundé (orientada pelo teórico do anarquismo, o russo Piotr Alekseivitch Kropotkin, 1842-1921), após a derrocada do velho arraial pela quarta expedição do exército. Desfecho ao qual, ao contrário do que diz a história e o livro de Euclides, sobreviveram o Conselheiro e vários dos seus mais importantes seguidores, mediante um ardil engendrado pelos jagunços para ludibriar as tropas do exército e garantir a fuga e sobrevivência do líder messiânico.Tem-se, pois, em se tratando d’A Pedra do Reino, uma utopia voltada para o passado e para a tradição: a busca das raízes nordestinas e de uma identidade nacional, via resgate mítico dos valores regionais e tradicionais do Nordeste, e outra, no caso da Casca da Serpente, projetada para um futuro que se concretiza no presente textual: a criação de uma sociedade penetrada pela modernização e pelo progresso, mediante a tradução[1] crítica daqueles valores identitários arcaicos representados pelo antigo reduto messiânico o seu líder espiritual, o Conselheiro.Embora n’A casca da serpente, a utopia da Nova Canudos em moldes modernos seja posta para ser negada no final do romance, com a significativa destruição da Concorrência de Itatimundé, em 1969, isto é, em pleno contexto do regime militar iniciado em 1964, reduplicando-se, assim, em um novo texto/contexto o destino trágico do Belo Monte, o contraste entre o projeto utópico de Ariano e J.J. Veiga não deixa de ser fascinante. A configuração das duas utopias distintas pede uma leitura conjunta de ambas as narrativas em busca de suas possíveis articulações intertextuais e do diálogo que entretêm com a matriz euclidiana. O próprio e inusitado desfecho incentiva ainda mais esta leitura.A complexidade da empresa extrapola, no entanto, os limites deste ensaio. Proponho-me, assim, deter-me, por enquanto, apenas no exame do projeto sebástico d’A Pedra do Reino, adiando o cotejo com o texto de J.J. Veiga para um posterior desdobramento destas reflexões.A utopia sebastianista d’A Pedra do ReinoNo romance de Ariano Suassuna, o sertão do Nordeste está predestinado a realizar o sonho do Quinto Império profetizado no século XVII pelo jesuíta Antônio Vieira. A referência explícita à utopia sebástica de Vieira é feita por um dos personagens do romance, um dos mestres e mentores intelectuais do narrador, o monarquista Samuel Wandernes, no “folheto” XXXIV. Narrado os sucessos da batalha de Alcácer-Quibir, “o fidalgo dos engenhos”, conforme é denominado por Quaderna, destaca o episódio em que Jorge de Albuquerque Coelho, donatário da capitania de Pernambuco, empresta a Dom Sebastião o cavalo branco no qual o rei se encanta, “‘encobrindo-se’ para voltar um dia com seu nome verdadeiro ou outro qualquer, a fim de instaurar o Quinto Império do Brasil, sonho messiânico e profético de Antônio Vieira e de outros visionários da nossa Raça!” (Suassuna,1976, p.169). Em outra passagem do romance – “folheto” LXXX – Samuel volta a estabelecer a mesma analogia entre o projeto messiânico desejado para o Brasil e as profecias do jesuíta lusitano: “O Brasil poderia ficar mais importante do que o Império de Filipe II, realizando nós, aqui, o Quinto Império profetizado por Antônio Vieira!” (Suassuna,1976, p. 577).Quaderna procura fundir a tradição do sebastianismo lusitano defendido por Samuel com os movimentos messiânicos ocorridos no Nordeste, conciliando, deste modo, as duas vertentes do mito sebastianista: a vertente aristocrática ibérica e a vertente popular nordestina. Compõem a imagética religiosa do V Império os seguintes movimentos messiânicos ocorridos no Sertão do Nordeste nos séculos XIX e XX: o movimento da Serra do Rodeador ou Santa da Pedra, também conhecido como Cidade do Paraíso Terrestre, eclodido em Bonito, interior de Pernambuco, em 1819; o movimento da Pedra Bonita, Reino Encantado ou Pedra do Reino, surgido em Flores também em Pernambuco (1835-1838); o Movimento de Canudos ou Belo Monte (1896-1897), denominado no romance de Suassuna de Império do Belo Monte de Canudos, e o movimento de Padre Cícero de Juazeiro (1872-1934).[2]Mediados pela leitura das novelas de cavalaria que informam o imaginário popular do sertão, sobretudo pela História de Carlos Magno e os doze pares de França, (cujo personagem central vem reproduzido numa das gravuras que ilustra o romance) esses movimentos messiânicos se revestem no texto de Ariano de um aspecto nobiliárquico, místico-cavalheiresco. Como tais, integram, na condição de “reinos tributários”, a vertente religiosa daquilo que Quaderna denomina “A Guerra do Século do Reino”[3] ou “A Grande Revolução Sertaneja do Povo Fidalgo-Castanho do Brasil”. O movimento do Contestado, também conhecido por Guerra Santa, único não ocorrido no Nordeste, mas no interior de Santa Catarina entre 1910 e 1914, embora não seja mencionado nenhuma vez no discurso do narrador ou no dos demais personagens, comparece implicitamente, através de sua aparelhagem cavalheiresca (Queiroz, 1971) como um dos parâmetros para a recriação simbólica da monarquia messiânica do fenômeno da Pedra do Reino.Afora as seitas referentes à “dinastia” do “reino” do Pajeú, (ou seja, a do Rodeador e da Pedra do Reino, que constituem os pilares centrais do projeto sebástico do romance), o movimento de Canudos é o que merece maior destaque na obra de Ariano. O arraial de Antônio Conselheiro aparece como ponto de referência constante para a representação da utopia messiânico-cavalheiresca do narrador, tornando-se o símbolo paradigmático da “Monarquia Sertaneja” por ele sonhada: aquela que concilia de forma “harmônica” as reivindicações da classe oprimida (a “Esquerda”, como a nomeia miticamente Quaderna, influenciado por seu outro mestre e mentor intelectual, o “comunista” Clemente Hará de Ravasco Anvérsio) com as imagens emblemáticas da heráldica, readaptadas ao contexto cultural do sertão:“Meu sonho é fazer do Brasil um Império do Belo Monte de Canudos, um Reino de república-popular, com a justiça e a verdade da Esquerda e com a beleza fidalga, os cavalos, os desfiles, a grandeza, o sonho e as bandeiras da Monarquia Sertaneja!” (Suassuna, 1976, p. 285).A exemplo da interpretação que confere aos fenômenos da Serra do Rodeador e da Pedra Bonita, Quaderna reveste o arraial do Belo Monte de uma configuração épica, procurando ajustá-lo às suas idéias de epopeieta.[4] Deste modo, o combate travado entre os jagunços de Canudos e as expedições militares ganha aqui os mesmos contornos das batalhas das novelas de cavalaria. Num excerto do romance, onde situa o movimento como um dos episódios da “Guerra do Reino”, o narrador assim o especifica: “aquele cerco ilustre, povoado de combates sanguinolentos e retiradas heróicas, que foi a ‘Guerra do Império do Belo Monte de Canudos’ [...]”(Suassuna, 1976, p. 284). O Conselheiro, por sua vez, recebe um título nobiliárquico equivalente aos que Quaderna confere aos beatos sebastianistas da Pedra, sendo designado como o “Regente Dom Antônio Conselheiro” (Suassuna, 1976, p. 42).Além das novelas de cavalaria, as imagens utilizadas para representar o movimento de Canudos e a figura do seu messias derivam de três suportes textuais diferentes: Os sertões, de Euclides da Cunha, a literatura de cordel e os manuscritos atribuídos a Antônio Conselheiro.Da obra de Euclides, a quem considera seu precursor e com o qual “compete” em termos de talento, temática e estilo literário, o narrador assimila as metáforas e os símiles de que lança mão para instaurar uma semelhança nobilitadora ente os aspectos e os feitos do arraial e o universo cavaleiresco da Idade Média ou a realidade histórica e literária da Antigüidade grega. Ao assinalar a “coincidência” entre a data de seu nascimento e os episódios da guerra de Canudos, afirma: “Eu nasci a 16 de junho, de 1897, no auge do ‘Cerco de Canudos’, que é a nossa ‘Guerra de Tróia’”. (Suassuna, 1976, p. 271 – grifos nossos). Imita, assim, Euclides que se refere n’Os Sertões ao arraial do Conselheiro como a nossa “Tróia de Taipa”. A própria expressão “Império do Belo Monte”, com que designa o movimento, encontra-se, segundo Maria Isaura Pereira de Queiroz (1976, p. 234), no diário do autor d’Os Sertões, embora, de acordo com o que constata a socióloga, não pareça provável haver em Canudos um arremedo de monarquia com títulos nobiliárquicos, nem tampouco conste que o Conselheiro tivesse realmente criado “instituições imperiais”. Ainda do escritor de Contrastes e confrontos, Quaderna imita o vezo de mostrar erudição e o estilo hiperbólico É o que ele mesmo confessa ao corregedor, personagem a quem presta depoimento, quando encontra-se preso na cadeia de Taperoá, suspeito de envolvimento na morte de seu tio-padrinho, Dom Sebastião Garcia Barretto, e do desaparecimento misterioso do filho deste, Sinésio, o Alumioso, o rapaz do cavalo branco, representante simbólico no presente textual da figura de São Sebastião. Assim, quando o corregedor lhe chama a atenção para sua tendência à hipérbole, o narrador, cita Homero e Euclides da Cunha como modelos para justificar o uso freqüente dessa figura retórica no seu romance: “Esses aumentos fazem parte do próprio estilo epopéico! Homero, mesmo, aumenta extraordinariamente o número de Cangaceiros gregos comandados pelos Reis lá dele, e, em Canudos, Euclydes da Cunha faz o mesmo, tanto para o lado do Exército quanto para o lado dos Sertanejos!” (Suassuna, 1976, p. 364).É recorrendo também ao livro de Euclides da Cunha que o narrador ressalta o aspecto místico de Antônio Conselheiro, estendendo-o, por contigüidade, ao próprio autor d’Os Sertões. Numa passagem da obra clássica sobre Canudos, o escritor fluminense descreve a morte do líder messiânico dentro do templo em ruínas e relata, logo a seguir, a propagação da crença dos fiéis na imortalidade do Conselheiro. Na opinião dos adeptos, o profeta não morrera. Seguira em viagem ao céu e voltaria em breve, revestido de poderes sobrenaturais, a fim de destruir as tropas do Exército que sitiavam o arraial nos seus estertores. Na descrição da cena, Euclides utiliza uma imagética bíblica para mostrar a forma como os sectários da seita imaginam o retorno miraculoso do messias: “[...] o profeta volveria em breve, entre milhões de arcanjos, descendo – gládios flamívomos corruscando na altura – numa revoada olímpica, caindo sobre os sitiantes, fulminando-os e começando o Dia do Juízo...” (Cunha, 1957, p. 490).Os dois acontecimentos descritos no trecho d’Os sertões, o falecimento do Conselheiro e o regresso extraordinário esperado pelos fiéis, são apresentados por Quaderna como se fossem assistidos pessoalmente pelo próprio autor do relato. Transpondo para Euclides os dons visionários e proféticos que costuma atribuir a si mesmo, ele associa a cena da morte do Conselheiro e a imagética bíblica por meio da qual Euclides configura a espera messiânica dos adeptos na volta do messias à transfiguração de Cristo no deserto. Através desta associação, engendra várias equivalências semânticas. Primeiro, estabelece uma analogia entre a “visagem” de Euclides e a dos profetas que assistiram a transfiguração do Filho de Deus. A seguir, cria uma correspondência entre a “transfiguração” do Conselheiro e a de Jesus. Depois, correlaciona a figura do beato do Belo Monte às de Ezequiel e João de Patmos. Por último, compara a “ressurreição” de Antônio Conselheiro ao reaparecimento calamitoso de Sinésio na Vila de Taperoá em 1935:Sabe quem teve, aqui no Brasil, uma ‘viração’ parecida com aquela Transfiguração do Cristo, Sr. Corregedor? (...)– Euclydes da Cunha! Este, como um dos Profetas das terras desérticas de Canudos, viu Santo Antônio Conselheiro morrer do jejum de protesto e dos efeitos de um ferimento de bala. Como visionário e Profeta que era, viu, esticado no chão, o Santo e Profeta de todos nós, Sertanejos. Teve, aí, uma viração e viu o Conselheiro transfigurado e exaltado, ressurreto ‘entre milhões de Arcanjos descendo – gládios flamívomos, coruscando na altura – numa revoada’. É por tudo isso, (...) que eu digo que Ezequiel e João eram os Conselheiros judaicos! É por isso que eu disse que, no dia em que chegou aqui o nosso Príncipe do Cavalo Branco, estreando sua grande Marcha desaventurosa de calamidades, vinha cercado por legiões de Arcanjos e Demônios perigosos! (Suassuna, 1976, p. 468 – grifo do autor).A representação mística de Antônio Conselheiro ocorre ainda pela mediação do cordel, especificamente através dos versos imputados ao poeta popular Jota Sara. O poema, recitado pelo personagem Lino Pedra-Verde, o vate sertanejo, celebra os atributos pessoais do Conselheiro conforme são concebidos pelo imaginário do sertão. Condensam-se aí a figura do “simples penitente” portador dos predicados mais caros ao sertanejo – modéstia, honestidade e valentia – com a figura carismática do profeta, identificado a Moisés e tido como “Pai do Povo” e “autor da Redenção”, em torno de quem se cirstalizam as esperanças milenaristas acerca do regresso miraculoso de Dom Sebastião. Vejam-se, a propósito, as estrofes do referido folheto, cujo desfecho volta a aludir à analogia entre Canudos e a Guerra de Tróia imagética, como se viu, tomada de empréstimo a’Os sertões:“O Leitor já viu contara história do Conselheiro?Foi um simples Penitenteque assombrou o mundo inteiro:modesto, honesto e valente,que fascinou muita genteneste Sertão brasileiro!Sua Arma era uma vergana espécie de bastão.Era o tipo de Moiséspregando pelo Sertão:imitava-o no Sinaie o Povo o tinha por Paie autor da Redenção!A Nação gastou dinheiroe cinco mil Oficiais!Nos pelados de Canudosestão seus restos mortais!Os ossos, petrificados:veio gente dos Estadosque não voltou nunca mais!Reuniu-se aquela gentepr’o dia da Redenção,esperando o Salvadore o Rei Dom Sebastião!Gente fazia fileira:foi a Tróia Brasileiranos carrascais do Sertão!”(Suassuna, 1976, p. 593).As prédicas de Antonio Conselheiro e a versão de QuadernaNo reaproveitamento dos manuscritos atribuídos a Antônio Conselheiro, Quaderna engendra uma contraposição entre a monarquia sebastianista que visa restaurar no sertão do Nordeste e a monarquia dos braganças. Ao mesmo tempo, reelabora, com base nesses textos, a oposição encetada pelo líder messiânico de Canudos entre Monarquia e República.Embora recorra constantemente aos manuscritos do messias de Canudos, Quaderna não explicita, no corpus do romance, as fontes de onde colhe as palavras do Conselheiro. A esse respeito, afirma apenas vagamente: “[...] eu tomava, por caminhos do acaso, conhecimento dos ‘escritos’ deixados pelo Profeta e santo Peregrino do Sertão, o Regente do Império do Belo Monte de Canudos, Santo Antônio Conselheiro,” (Suassuna, 1976, p. 448). Sabemos, contudo, através das pesquisas por nós realizadas, que os “escritos” do “Peregrino do Sertão”, citados por Quaderna, não provêm de uma única matriz textual. Constituem uma miscelânea de prédicas colhidas em fontes diferentes e recriadas sob uma nova roupagem pelo narrador. Algumas dessas prédicas, às relativas ao iminente regresso de Dom Sebastião para pôr fim à República, são extraídas do trecho de um sermão recolhido por Euclides da Cunha, n’Os sertões. Outras, que pregam também a condenação do regime republicano, constam de uma carta encontrada pelo tenente coronel Dantas Barreto, em Belo Monte (Queiroz, 1976, p. 238). A maioria, porém, constitui versão readaptada de um discurso sobre a República inserido num manuscrito descoberto pelo médico João Pondé, no dia 5 de outubro de 1897, quando as tropas do General Artur Oscar de Andrade assenhoaram-se vitoriosas do arraial de Canudos. Este discurso vem integralmente transcrito por Ataliba Nogueira (1978, p. 175-184), em Antônio Conselheiro e Canudos, os manuscritos de Antônio Conselheiro e que pertenciam a Euclides da Cunha.Excertos dessas várias prédicas comparecem como epígrafes do romance, juntamente com outros enunciados atribuídos a Dom Sebastião (prenunciando a luta contra os mouros em Alcácer-Quibir) e a Dom Pedro I (por ocasião da proclamação da independência do Brasil).Na utilização dos “escritos” de Antônio Conselheiro, que reúne sob o título de Caminho Místico do Peregrino do Sertão, o narrador manipula a seu bel-prazer as profecias do líder do Belo Monte. Empregando um processo de colagem de textos, característico da técnica de composição do romance, ele mescla parte do sermão colhido por Euclides a trechos do discurso sobre a República inserido no manuscrito achado por João Pondé. Ajunta ainda a estes fragmentos algumas expressões da carta encontrada por Dantas Barreto, que figuram numa das epígrafes da narrativa. Por meio desse processo de colagem, compõe um novo texto, onde as palavras do Conselheiro são correlacionadas ao fenômeno da Pedra do Reino e ao projeto messiânico do Quinto Império e servem para reafirmar tanto o aspecto religioso quanto o aspecto nobiliárquico da “Monarquia” e do “Catolicismo” sertanejos.[5]A inserção das profecias do messias de Canudos nos rituais da religião adotada por Quaderna evidencia-se nas práticas ritualísticas explicitadas numa das passagens da narrativa. Quando vai ao Lajedo “sagrado”, na véspera de Pentecostes, para cumprir as “obrigações litúrgicas” do “Catolicismo Sertanejo”, o narrador leva consigo duas obras que considera básicas: o Caderno de anotações astrológicas, herdado de seu pai, e o Caminho Místico do “santo” de sua devoção, Antônio Conselheiro. Uma das práticas da liturgia consiste justamente na leitura deste último livro, que passa a recitar, invocando Adonai.“[...] eu me voltei, primeiro, para a direção do Pajeú, onde estão as duas Torres de pedra do nosso Reino. E, abrindo o Livro escrito pelo Peregrino do Sertão, comecei a recitar, em tom de Salmodia, minha primeira invocação a Adonai [...]” (Suassuna, 1976, p. 454).Para que se verifique como se dá o processo de colagem acima referido e as readaptações introduzidas pelo narrador às palavras do Conselheiro, vale registrar os textos mencionados, cotejando-os depois com o texto de Quaderna. O discurso sobre a República será transcrito apenas parcialmente, dando-se destaque, sobretudo, aos aspectos retomados e reelaborados pelo narrador:Prédica do Conselheiro apresentada por Euclides da Cunha n’Os sertões:“Em verdade vos digo, quando as nações brigam com as nações, o Brazil com o Brazil, a Inglaterra com a Inglaterra, a Prússia com a Prússia, das ondas do mar D. Sebastião sairá com todo seu exército.Desde o princípio do mundo que encantou com todo seu exército e o restituiu em guerra.E quando encantou-se afincou a espada na pedra, ella foi até os copos e elle disse: Adeus mundo!Até mil e tantos a dois mil não chegarás!Neste dia quando sahir com o seu exército tira a todos no fio da espada deste papel da República. O fim da guerra se acabará na Santa Casa de Roma e o sangue hade ir até a junta grossa...” (Cunha, 1957, p. 151).Trecho do discurso sobre a República constante do manuscrito encontrado por João Pondé:“[...] a república [...] é incontestavelmente um grande mal para o Brasil que era outrora tão bela a sua estrela. Hoje porém foge toda a segurança, porque um novo governo acaba de ter o seu invento e do seu emprego se lança mão como meio mais eficaz e pronto para o extermínio da religião [...] a república quer acabar com a religião, esta obra-prima de Deus que há dezenove séculos existe e há de permanecer até o fim do mundo [...]. O presidente da república, porém, movido pela incredulidade que tem atraído sobre ele toda sorte de ilusões, entende que pode governar o Brasil como se fora um monarca legitimamente constituído por Deus; tanta injustiça os católicos contemplam amargurados. [...] Todo poder legítimo é emanação da Onipotência eterna de Deus e está sujeito a uma regra divina, tanto na ordem temporal como na espiritual, de sorte que, obedecendo ao pontífice, ao príncipe, ao pai, a quem é realmente ministro de Deus para o bem, a Deus só obedecemos. [...] É evidente que a república permanece sobre um princípio falso e dele não se pode tirar conseqüência legítima: sustentar o contrário seria absurdo, espantoso e singularíssimo; porque, ainda que ela trouxesse o bem para o país, por si é má, porque vai de encontro à vontade de Deus, com manifesta ofensa de sua divina lei. [...] Quem não sabe que o digno príncipe o senhor Dom Pedro 3º tem poder legitimamente constituído por Deus para governar o Brasil? Quem não sabe que o seu digno avô o senhor Dom Pedro 2º, de saudosa memória, não obstante ter sito vítima de uma traição a ponto de ser lançado fora de seu governo, recebendo tão pesado golpe, que prevalece o seu direito e, conseqüentemente, só sua real família tem poder para governar o Brasil? Negar estas verdades seria o mesmo que dizer que a aurora não veio descobrir um novo dia. O sossego de um povo consiste em fazer a vontade de Deus [...] É necessário enfim que se faça a sua divina vontade, combatendo o demônio que quer acabar com a fé da Igreja. [...] É erro de aquele que diz que a família real não há de governar mais o Brasil: se este mundo fosse absoluto, devia-se crer na vossa opinião; mas não há nada de absoluto neste mundo, porque tudo está sujeito à santíssima providência de Deus [...]. A república há de cair por terra para confusão daquele que concebeu tão horrorosa idéia. [...] Dá a Deus o que é de Deus e a César o que é de César. Mas este sublime sentimento não domina no coração do presidente da república, que a seu talante quer governar o Brasil, praticando tão clamorosa injustiça, ferindo assim o direito mais claro, mais palpável da família real, legitimamente constituída para governar o Brasil. Creio, nutro a esperança que mais cedo ou mais tarde há de triunfar o seu direito, porque Deus fará devida Justiça, e nessa ocasião virá a paz para aqueles que generosamente têm impugnado a república. É preciso, porém, que não deixe no silêncio a origem do ódio que tendes à família real, porque sua alteza a senhora Dona Isabel libertou a escravidão [...] porque era chegado o tempo marcado por Deus para libertar esse povo [...]” (Nogueira, 1978, p. 175-182).Excerto da carta encontrada por Dantas Barreto e utilizado como epígrafe n’ A Pedra do Reino:“Estejão certos que a República se acaba breve. É princípio de espinhos. Entrando a Monarquia, serão formados novos Batalhões, pois por serem os Batalhões feitos de canalhas é que tem chegado a tal ponto. O Prinspo é o verdadeiro dono do Brasil. Quem for republicano mude-se para os Estados-Unidos!” (Suassuna, 1976)Versão de Quaderna a partir dos três textos transcritos:“Ó Adonai! Ó Onça Tapuia, Negra e Malhada do Divino do Sertão! Esta República dominada por Burgueses gordos é, sem dúvida, um grande mal para o Império do Sertão do Brasil! Ela pretende minar e desmoralizar o Povo da Onça Castanha e nosso Catolicismo Sertanejo, esta obra-prima de Deus, religião mais perfeita e mais antiga do que o Catolicismo Romano! Este, tem somente vinte séculos, enquanto a nossa sagrada Religião da Pedra do Reino foi fundada no Deserto sertanejo da Judéia, junto às Pedras do Reino do Sinai e do Tabor! O Presidente da República, seus cupinchas e os gordos ricos, entendem que podem governar, trair e vender o Império do Brasil a seu bel-prazer! No entanto, o Brasil está predestinado para o Monarca Castanho do Povo, aquele que foi legitimamente constituído por Deus para fazer o bem e a grandeza do Povo Brasileiro! Quanta injustiça nós, Católicos Sertanejos, contemplamos amargurados! O poder do Presidente não é legítimo, a República não é legítima! Todo poder legítimo é uma emanação da Onipotência eterna do Deus Sertanejo através do Povo, e portanto está sujeito à regra divina da nossa Santa Igreja da Pedra do Reino, tanto na ordem temporal como espiritual! Todos os Brasileiros deveriam estar obedecendo a Quaderna, Príncipe, Pai e Profeta, porque obedecendo a ele, é a Deus que todos obedecem. É evidente, para todas as pessoas de bem, que esta República permanece sob um princípio falso e só traz o mal para o Povo Brasileiro! Ainda, porém, que ela trouxesse algum bem, ainda assim é má por si mesma, porque contraria a Lei sagrada do Povo e do Sertão! Quem não sabe que o digno Príncipe, o Senhor Dom Pedro Dinis Quaderna, deveria, logo, ser coroado como Dom Pedro IV, O Decifrador, Rei do Sertão, Imperador do Brasil e Sumo Pontífice da Igreja Católico-Sertaneja, sendo, como tal, reconhecido pelas Nações? Negar estas verdades, seria o mesmo que dizer que o Sol não é divino e não descobre sempre um novo dia, aos raios de seu fogo de Ouro! É erro, e erro grave, dizer que a família real dos Quadernas não deve mais governar o Brasil, como fez há um século na Pedra do Reino do Sertão do Brasil! Uma coisa é o Sertão, outra é o Mundo! Se o Mundo fosse divino e absoluto, ainda se poderia duvidar. Mas o Sertão é que é divino, e o Sertão só jura e pune pelo sangue real dos Quadernas! Por isso, esta República da iniqüidade cairá por terra e, mais cedo ou mais tarde, Deus fará a devida justiça! A República se acaba breve: é princípio de Espinhos! O Príncipe é o verdadeiro dono do Brasil! Das ondas do Mar, Dom Sinésio Sebastião sairá com todo o seu Exército. Tira a todos, no fio da Espada, desse papel da República, e o sangue há de ir até a junta grossa. Quem for republicano, mude-se para os Estados Unidos! O Tempo está chegando, o Século vem vindo! É preciso que Deus e o Povo não deixem em silêncio a causa verdadeira e a origem de todos os obstáculos que o Presidente da República e seus cupinchas levantam, para impedir que a família imperial dos Quadernas chegue de novo ao Trono do Brasil: é o medo, é o horror de que todos ficaram possuídos, ao saber que, na Pedra do Reino, há um século, Dom João II, o Execrável, mandou sacrificar sete mil Cachorros que, se o Reino tivesse continuado, teriam ressuscitado como indômitos Dragões, para devorar os poderosos e confirmar o Império, acabando a escravidão do Povo, a traição ao Brasil, e instaurando, de uma vez para sempre, a justiça e a monarquia do Povo, através da Coroa de couro e prata da Onça Malhada do Sertão!” (Suassuna, 1976, p. 456-457).Os textos de Antônio Conselheiro apresentam todos eles uma oposição dicotômica entre Monarquia e República. A bipolarização entre esses dois regimes não assume, pelo menos nos exemplos em destaque, uma coloração política nitidamente delineada. Fundamenta-se, ao invés, em um critério eminentemente teológico,[6] que se explicita, de forma mais contundente, ao longo de todo o segundo texto transcrito. Com base nesse critério, a República adquire uma conotação negativa. Consubstancia-se como uma instituição contrária aos princípios básicos da religião católica, aos dogmas ortodoxos da Igreja Romana, tais como os entendia o Conselheiro.7 Introduzindo a separação entre Igreja e Estado, entre poder espiritual e poder secular, a instituição republicana é vista como uma ordem ilegítima, identificada ao mal e às forças demoníacas. Em sentido contrário, justificam-se os louvores à Monarquia. Partidário do direito divino do rei, a quem vê como autêntico representante de Deus na terra, o beato concebe o regime monárquico como uma ordem ideal, cujo poder é legitimado pela onipotência divina. Explica-se, assim, a nostalgia ao regime nobiliárquico e a referência aos membros da Casa de Bragança como os genuínos detentores do poder constituído, em contraposição ao presidente da República, em cujo governo enxerga uma usurpação desse poder que, por direito natural e decreto divino, pertence à família imperial.O tema da restauração da Monarquia não adquire, todavia, nas palavras do profeta do Belo Monte, a feição que lhe deram os republicanos históricos. Entre esses, o próprio Euclides da Cunha que, antes de assistir in loco ao combate, denomina o movimento de Canudos de “a nossa Vendéia”, numa associação entre o arraial do Conselheiro e o levante monarquista camponês da Vendéia contra a Revolução Francesa de 1789 (Galvão, 1976, p. 55; 68). Ao contrário do que pensavam, portanto, o Governo da República e inicialmente também Euclides, o Conselheiro não apregoa nenhuma ação concreta, visando a derrocar a nova ordem em vigor. Os textos em exame não indicam nenhuma atitude neste sentido. Neles, a volta ao antigo regime é concebida num plano mítico. Seria através do regresso miraculoso de Dom Sebastião que se poria fim ao reinado do “Anti-Cristo”. Nos sermões colhidos por Euclides fica patente a saída proposta para acabar com a “iniqüidade” da República: “[...] das ondas do mar D. Sebastião sairá com todo seu exército [...] Neste dia [...] tira a todos no fio da espada desse papel da República”. A solução proposta é, portanto, uma solução messiânica, não havendo nenhuma alusão à possibilidade de restaurar-se a ordem monárquica por meio de uma insurreição armada que se destinasse a este fim. O próprio Euclides, nas páginas d’Os sertões, corrigindo sua percepção inicial de republicano, desmente “a propalada conspiração monarquista de que Canudos seria um foco” (Galvão, 1976, p. 56).N’A Pedra do Reino ao acoplar, via invocação a Adonai, as várias profecias e prédicas do Conselheiro, Quaderna encampa também a mesma oposição entre Monarquia e República. Sem romper com o teor mítico e místico dos textos em que se apóia, ele utiliza as mesmas imagens lingüísticas empregadas pelo profeta de Canudos. Introduz, porém, no seu discurso, uma série de encaixes e de substituições semânticas, a fim de readaptar as palavras do “peregrino” às suas próprias concepções monárquico-religiosas. Assim, se, por um lado, conserva o mesmo princípio teológico como argumento justificador da bipolarização entre ambos os regimes políticos, por outro lado, acresce a esse princípio os critérios de classe social e de região, de modo a ajustar o pensamento do Conselheiro às características do “Império” do sertão. Ancorada em tais critérios, a deslegitimação do regime republicano se dá não em nome dos dogmas da religião católica, como no caso do líder de Canudos8, mas em nome dos preceitos do “Catolicismo Sertanejo” da Pedra do Reino. Como esses preceitos se calcam na fusão cordial dos valores sócio-culturais dos dois segmentos da sociedade brasileira privilegiados pelo narrador, o povo e a aristocracia rural, a crítica à República identifica-se com a crítica a uma determinada classe social que não representa esses valores: a burguesia urbana. Por outro lado, a Monarquia de que fala Quaderna e cujo poder concebe como emanação legítima da ordem divina não é, como postula Antônio Conselheiro, a Monarquia dos Bragança, mas a “Monarquia” da Pedra do Reino, a qual pretende restaurar através do Quinto Império sebastianista. Em conseqüência, o monarca a quem está predestinado o trono do Brasil não pode ser nenhum descendente da dinastia bragantina, e sim Dom Pedro IV. Quer dizer, o próprio narrador que se considera herdeiro de uma dupla linhagem real, a dos Ferreira-Quaderna, do reduto messiânico da Pedra, e a dos Garcia-Barretto, cuja origem remonta a Dom Sebastião. A exemplo dos sermões do Conselheiro, a restauração desse “regime monárquico” também se consubstancia, no discurso de Quaderna, via solução messiânica. Corporificada agora na figura de Dom Sinésio, essa solução reatualiza a mesma imagética empregada nas prédicas que vaticinam o regresso do messias lusitano.As alterações empreendidas pelo narrador nos manuscritos do profeta de Canudos não constituem um mero jogo retórico desprovido de significação. Ao invés, elas possibilitam explicitar, a partir do par antitético Monarquia/República, um dos fundamentos ideológicos básicos que norteia a perspectiva do romance. A saber, a bipolarização entre o mundo rural do sertão e a civilização urbana e burguesa. Poder-se-ia dizer, portanto, que a dicotomia que alicerça o discurso de Quaderna não é propriamente entre regime monárquico e regime republicano, no sentido em que se costumam conceber politicamente estes dois termos. É, sobretudo, entre Nordeste pecuário-algodoeiro e Centro-Sul do país, entre sertão e litoral, identificados respectivamente com os valores “nobiliárquicos” da “fidalguia” sertaneja e com os valores republicanos da burguesia citadina.É em contraposição, portanto, ao processo de urbanização e industrialização do país, cujo marco histórico é a Revolução de 1930, que se insurge O romance d’A Pedra do Reino. A esse contexto de 30 junta-se ainda a fase de “arranque” desenvolvimentista do governo de Juscelino Kubitschek, nos anos 50, onde se dá o incremento da industrialização, e o contexto do movimento militar de 1964, durante o qual ocorrem as condições políticas e ideológicas para a implantação definitiva do capitalismo no Brasil, com afluência de grande massa de capital e tecnologia estrangeira, sobretudo na década de 70, na chamada fase do milagre brasileiro.”São essas três etapas conjunturais do processo de modernização do país que funcionam como condições de produção do romance (escrito de 1958 a1970) e, conseqüentemente, como interlocutores em relação aos quais o texto de Suassuna busca recuperar uma ordem perdida, um mundo “fidalgo” e cavalheiresco anterior à industrialização.A imagética bíblica do êxodo: uma ilusão compensatóriaOs dados ficcionais que ajudam a explicitar a reação do narrador Quaderna aos contextos históricos assinalados estão disseminados ao longo do romance. Eles concentram-se principalmente no “folheto LXII, O Almoço do Profeta”, onde o narrador parafraseia vários trechos bíblicos do Êxodo. Os capítulos e versículos parafraseados referem-se à fuga dos judeus do Egito em busca da terra prometida, à perseguição ao povo israelita pelo exército do faraó, à morte dos soldados egípcios no Mar Vermelho, ao cântico entoado por Moisés e pelos demais filhos de Israel em louvor a Jeová, às tábuas da Lei entregues por Deus ao profeta hebraico, à construção da arca da aliança.9 Estes encaixes intertextuais, reajustados n’A Pedra do Reino ao projeto messiânico do Quinto Império, são vistos aqui como uma transposição alegórica da temática do judaísmo ao contexto nacional que informa subjacentemente a fabulação narrativa. Transcreva-se a passagem do romance:“Quando chegar o Século do Reino, e for anunciada a Vigília de fogo, o Senhor enviará a Coluna de brasas sobre o acampamento e o território dos estrangeiros e dos criminosos e poderosos aliados seus. A Onça de fogo do Sertão destruirá seus Exércitos, despedaçando as rodas dos carros-de-combate, e todos os traidores serão arrojados do Sertão para o fundo do Mar. Dirão assim os Estrangeiros: – ‘Fujamos dos Brasileiros e outros Latinos, porque o Deus de Fogo peleja a favor deles e contra nós!’ E o Deus de Fogo dirá a Quaderna: – ‘Estende a tua Mão desde a Pedra do Reino até o mar, para que as águas de Sal se voltem contra os Estrangeiros e corroam seus Carros diabólicos, suas máquinas de fogo e sua cavalaria de engenhos de chamas!’ E assim será! Quando Quaderna estender sua mão, quando o Rei brandir o seu Cetro e o Profeta seu Báculo, o Príncipe do Povo, o Moço do Cavalo Branco será suscitado e o mar fará soçobrar os traidores, refluindo depois, ao amanhecer, para o lugar que ocupava. Naqueles dias, o Rei escreverá um Canto para ensinar ao Povo do Brasil, aos filhos do Sertão do Mundo. E depois de suscitado o Príncipe pelo Canto, o Senhor do Fogo ordenará a Sinésio, filho de Dom Pedro Sebastião, dizendo: ‘Anima-te, sê forte e tem coragem, porque tu farás entrar os Filhos do Sertão no Reino que lhes prometi, e eu estarei com o Povo’. Como de fato: logo que Quaderna acabar as palavras deste Canto e desta Lei no seu Livro, ordenará aos Sertanejos que levem a Arca de Pedra da Aliança do Senhor do Fogo, dizendo: ‘Tomai este Livro e enterrai-o ao pé das Torres de pedra da Catedral encantada do Reino, para que ele sirva de fundamento e pedra-angular para o Império do Brasil.’ E quando os Estrangeiros fugirem, desbaratados, juntamente com os traidores que os apóiam, encontrar-se-á o sagrado Deserto do Sertão com as Águas salgadas e sagradas do mar. Assim, naquele dia, o Senhor do Fogo livrará o Sertão, e o Povo verá seus inimigos mortos na Praia do mar, pelo castigo que a mão poderosa da Divindade executará contra eles, contra sua injustiça, sua dureza e sua iniqüidade. Então Quaderna, subindo à sua Pedra, entoará com o Povo o sagrado Canto que o mesmo Quaderna fez, dizendo: ‘Cantemos ao Deus de Fogo do Sertão, porque ele manifestou gloriosamente seu poder, precipitando no Mar as máquinas e as empresas, os engenhos infernais dos Estrangeiros e traidores, castigando a força e o opróbio dos Poderosos que nos oprimiam e exaltando o Sertão, com sua coragem, suas pedras, seus espinhos, seus cavalos e seus Cavaleiros’!“ (Suassuna, 1976, p. 459-461).O exemplo transcrito emprega a mesma imagética escatológica que assinala no Êxodo a destruição das tropas egípcias e a salvação dos judeus, conduzidos por Moisés à terra de Canaã. Acoplada à temática sebastianista do romance, a simbologia bíblica se aplica, todavia, a uma outra realidade cultural, ajustando-se, assim, ao contexto histórico a que se dirigem as críticas de Quaderna: o contexto desenvolvimentista acima especificado. O deslocamento histórico pressupõe, portanto, algumas readaptações no texto matriz, sem que se perca, contudo, o sentido simbólico das imagens teológicas tomadas de empréstimo ao suporte textual que subsidia o discurso do narrador. Desta forma, o tema do êxodo judaico, transplantado para o universo do sertão, instaura uma correspondência semântica entre judeus e sertanejos, de um lado, e egípcios e estrangeiros, do outro lado. Os primeiros consubstanciam-se como os eleitos de Deus a quem está destinada a terra da promissão. Os segundo como as hostes do mal, os alienígenas sobre quem recai(rá) o castigo da divindade. A analogia com esse episódio do judaísmo se apresenta, pois, como um mecanismo ideológico de que a narrativa lança mão para legitimar a crítica que empreende à penetração do elemento estrangeiro no território nacional. No projeto messiânico do romance, a profecia escatológica do extermínio do alienígena com o advento do Século do Reino assinala – via simbologia bíblica – o retorno à imagem idealizada de um mundo cultural arcaico, isento da contaminação nefasta dos componentes exógenos, representantes do capitalismo industrial. Convertendo o sertão numa nova Canaã e os sertanejos no novo povo eleito, o texto desloca para o plano mítico-teológico a situação histórica do Brasil no contexto em pauta, isentando-se, assim, de um confronto com a estrutura sócio-econômica derivada do modo de produção capitalista responsável pelo acirramento das contradições sociais e pela permanência do subdesenvolvimento das regiões mais atrasadas do país. O processo de deslocamento serve, então, simultaneamente, para desvendar e encobrir o descompasso entre a realidade industrial e burguesa dos centros urbanos hegemônicos (a região Sudeste) e a realidade subdesenvolvida e patriarcal do Nordeste. A crítica pretendida pelo narrador ao sistema capitalista termina por se diluir em otimismo. A imagética paradisíaca projetada sobre o sertão com o vaticínio da chegada do Século do Reino funciona, para usar um raciocínio de Antonio Candido (1987), como “instrumento de afirmação nacional” e “justificativa ideológica”. A projeção utópica transforma-se, assim, em “ilusão compensatória” da miséria da região sertaneja. Ou, empregando as palavras de Roberto Schwarz (1987), em “interpretação triunfalista do nosso atraso”.NOTAS 1.Utilizamos o termo tradução, por oposição à ‘Tradição’ no sentido que lhe é atribuído por Robins na esteira de Homi Bhabha, ou seja, o processo pelo qual o sujeito no contexto da globalização, incorpora outras identidades e valores de sua origem cultural e passa a posicionar-se a partir de um “entre-lugar” discursivo duplo e ambivalente. Como diz Stuart Hall, buscando situar o pensamento de Robins em consonância com o de Bhabha: “Algumas identidades gravitam ao redor daquilo que Robins chama de tradição, tentando recuperar sua pureza anterior e recobrir as unidades e certezas que são sentidas como tendo sido perdidas. Outras aceitam que as identidades estão sujeitas ao plano da história, da política, da representação e da diferença, e, assim, é improvável que elas sejam outra vez unitárias ou ‘pura’; e estas conseqüentemente, gravitam ao redor daquilo que Robins seguindo Homi Bhabha, chama de ‘Tradução’” (HALL, 2002, p.87). As respectivas utopias representadas no romance de Ariano Suassuna e J.J. Veiga, parecem ilustrar esse movimento contraditório entre Tradição e Tradução. 2.A data com que se assinala o movimento de Padre Cícero delimita o período de sua chegada a Juazeiro até sua morte. No entanto, ele só é reconhecido taumaturgo, e portanto, como líder messiânico a partir de 1889 conforme assinala Queiroz (1976, p. 253-255).Para a descrição dos movimentos messiânicos elencados vê as páginas 216 e 268, da obra acima mencionada nesta nota.3.O Século do Reino é delimitado temporalmente no âmbito da narrativa de Suassuna pelo intervalo decorrido entre dois acontecimentos, um histórico, outro ficcional:A eclosão do movimento messiânico d’A Pedra do Reino em 1835 e o “miraculoso retorno de Sinésio, O Alumioso, personagem que representa a figura de Dom Sebastião no presente textual, cuja volta a Taperoá ocorre justamente em 1935, ou seja, cem anos após o primeiro evento mencionado.4.Na explicitação de seu projeto literário, Quaderna se propõe a compor uma epopéia, ou melhor, “um gênero literário novo, o Romance epopéico”, “uma espécie de Sertaneida, Nordestíada ou Brasiléia”, parecida com a do senador Augusto Meira (Suassuna, 1976, p. 185).5.Na explicitação de seu projeto literário, Quaderna se propõe a compor uma epopéia, ou melhor, “um gênero literário novo, o Romance epopéico”, “uma espécie de Sertaneida, Nordestíada ou Brasiléia”, parecida com a do senador Augusto Meira (Suassuna, 1976, p. 185).6.O Catolicismo Sertanejo do projeto messiânico de Quaderna funde, através da imagem emblemática da Onça Malhada (animal que representa o ideário Armorial do autor), as figuras bíblicas do Novo e Velho Testamento, ou seja, a divindade do Catolicismo Romano e a do Judaísmo, Deus e Jeová.REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICASBHABHA, Homi. O local da cultura. Trad. de Myriam Ávila et all.Belo Horizonte: Ed da UFMG, 2001.CANDIDO, Antonio. Literatura e subdesenvolvimento. In: _______. A educação pela noite e outros ensaios. São Paulo: Ática, 1987 (série temas, v 1).DANTAS, Paulo. Capitão Jagunço. 5 ed rev e def. São Paulo: Global, 1982.FONSECA, Aleiton Santana. Capitão sim: jagunço também (o discurso do narrador no romance Capitão Jagunço) In: BRONZEADO, S. L.Ramalho de Farias (org.) Caderno de textos regionalismo e literatura. João Pessoa: Curso de Pós-Graduação em Letras da UFPB, série II (3), 1990.GALVÃO, Walnice Nogueira. Sacos de gatos: ensaios críticos. São Paulo: Duas cidades, 1976._________. Gatos de outro saco: ensaios críticos. São Paulo: Brasiliense, 1981.HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Trad.Tomas Tadeu da Silva e Guaracira Lopes Lauro. Rio de Janeiro: DP&A, 2002.MONIZ, Eduardo. A guerra social de Canudos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978 (Col. Retratos do Brasil, 117).NOGUEIRA, Ataliba. Antônio Conselheiro e Canudos: revisão histórica. A obra manuscrita de Antônio Conselheiro e que pertenceu a Euclides da Cunha. São Paulo: Nacional,1978 (Brasiliana, v 355).QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. O messianismo no Brasil e no mundo. 2 ed rev e aum. São Paulo: Alfa-Omêga, 1976.QUEIROZ, Maurício Vinhas. Messianismo e conflito social: a guerra sertaneja do Contestado:1912-1916. São Paulo: Ática, 1977 (Ensaios 2).SANTOS, João Felício. João Abade.Rio de Janeiro: Agir, 1958.SCHWARZ, Roberto. Nacional por subtração In: _______ . Que horas são? São Paulo: Companhia das Letras, 1987.SUASSUNA, Ariano. O romance da Pedra do Reino e o príncipe do sangue do vai-e-volta. 4 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1976.VEIGA, J.J. A Casca da Serpente. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989.
|
This entry was posted on 01:18 and is filed under . You can follow any responses to this entry through the RSS 2.0 feed. You can leave a response, or trackback from your own site.

2 comentários:

On 18 de abril de 2013 às 11:32 , Renailda Cazumbá disse...

Cara professora, fico sempre mais sabida sobre a obra de Suassuna ao ler seus textos. Obrigada.
Estou cursando doutorado em Memória na UESB (Estadual de Vitória da Conquista), sobre o Romance d'A Pedra do Reino, e minha discussão será em torno desses problemas que vc já trata em suas pesquisas: história, memória e escrita ficcional. Preciso utilizar seus livros. Como faço para adquiri-los?
Parabéns pelo trabalho. Um abraço.
Renailda Cazumbá

 
On 13 de setembro de 2015 às 07:37 , Tchô disse...

Oi professora Sônia, faço parte de um grupo de escritores independentes em Minas Gerais e temos um grande interesse nos programas e projetos que você desenvolve na UFPE. Gostaríamos de participar de algum evento em seu estado no próximo ano para poder divulgar nossas obras literárias. Se tiver interesse na ideia me mande um email arialisson@yahoo.com.br
Obrigado e parabéns pelo trabalho.